A história macabra do açúcar

William Dufty

É tentador averiguar a função exercida pelo açúcar no declínio do Império Árabe.

Após a ascensão do Islã, o açúcar veio a se tornar uma potente arma política. Os homens seriam capazes de vender suas próprias almas para tê-lo. O mesmo destino que destruiu os conquistadores árabes viria agora a atormentar seus adversários cristãos. Em sua marcha para arrancar os lugares santos das mãos do Sultão, os cruzados logo desenvolveram um gostinho todo especial pelo condimento dos sarracenos. Alguns desejavam simplesmente se lançar nas terras dos infiéis para receber suas doses de suco fermentado de cana e doces. Em breve os governantes europeus viriam a descobrir que seus embaixadores na corte do Egito estavam se corrompendo pelo hábito de comer açúcar, e sendo subornados com custosas especiarias e açúcar. Alguns tiveram que ser retirados.

A última grande Cruzada terminou em 1204. Poucos anos mais tarde o Quarto Concílio de Latrão reuniu-se em Roma para planejar outras cruzadas contra hereges e judeus. No ano de 1306 o Papa Clemente V — exilado em Avignon — recebeu um apelo em favor da reativação das cruzadas dos bons velhos tempos. Cópias deste apelo foram enviadas aos reis da França, Inglaterra e Sicília. Este antigo documento diplomático delineava uma posição estratégica açucareira voltada para o Sul, tendo como pretexto expulsar para o inferno aqueles crápulas sarracenos.

“Nas terras do Sultão, o açúcar cresce em grandes quantidades e dele o Sultão recolhe generosas taxas e tributos. Se os cristãos capturassem estas terras, infligiriam grandes danos ao Sultão e, ao mesmo tempo, a cristandade teria todo seu suprimento garantido a partir de Chipre”.

Diante de sinuosas afirmações deste gênero é chegada a hora da cristandade dar sua grande dentada no fruto proibido. O que sobreveio foram sete séculos, nos quais os sete pecados mortais floresceram através dos sete mares, deixando um rastro de escravidão, genocídio e crime organizado.

O historiador inglês Noel Deerr nos diz claramente: “Não seria exagero afirmar que o tráfico escravo atingiu a cifra de 20 milhões de africanos, dois terços dos quais sob a responsabilidade do açúcar”.

Os portugueses saíram à frente na primeira etapa da corrida européia ao açúcar. Os sarracenos haviam introduzido o cultivo da cana-de-açúcar na Península Ibérica durante a ocupação. Grandes plantações foram estabelecidas em Valência e Granada. O célebre Infante Dom Henrique explorou a costa ocidental da África à procura de campos para a plantação da cana fora dos domínios árabes. Não encontrou o que procurava mas, em compensação, descobriu muitos corpos negros aclimatados, que poderiam ser escravizados em regiões tropicais, onde a cana-de-açúcar pudesse florescer. Em 1444, Dom Henrique levou 235 negros de Lagos para Sevilha, onde foram vendidos como escravos.

Isto foi o começo.

Dez anos mais tarde, o Papa foi induzido a estender sua bênção ao tráfico negreiro. A autoridade papal chegou a “atacar, subjugar e reduzir à escravidão os sarracenos, pagãos e outros inimigos de Cristo”. A pretensa base racional que guiava o cristianismo no exterior era a mesma que, em casa, justificava a caça a hereges e judeus: salvar suas almas. A chegada de suarentos braços negros para o trabalho dos novos canaviais, nas ilhas da Madeira e Canárias, foi um providencial benefício para o Império Português. Por séculos, as escrituras foram sistematicamente pervertidas para o conforto dos cristãos traficantes de negros e açúcar.

Açúcar e escravidão eram as duas faces da moeda do Império Português. Por volta de 1456 os portugueses detinham o controle do comércio do açúcar na Europa. No entanto, a Espanha não estava muito atrás. Quando os mouros foram expulsos da Espanha deixaram atrás de si seus canaviais em Granada a Andaluzia.

Em sua segunda viagem ao Novo Mundo, no ano de 1493, Cristóvão Colombo levou consigo algumas mudas de cana-de-açúcar, por sugestão da Rainha Isabel. No livro escrito durante esta viagem Pedro Mártir afirma que os exploradores encontraram a cana crescendo nas ilhas de Hispaniola. Colombo sugeriu que levassem nativos das Índias Ocidentais para trabalharem nos canaviais espanhóis. Isabel opôs-se à idéia. Quando Colombo enviou à Espanha duas caravelas repletas de escravos a rainha ordenou que retornassem. Após a morte de Isabel o Rei Fernão de Aragão consentiu em recrutar o primeiro grande contingente de escravos africanos, necessários à florescente indústria açucareira de 1510.

Pouco mais tarde os portugueses começaram a cultivar cana no Brasil com o trabalho escravo (Martim Afonso de Souza fundou, em 1532, em São Vicente, o primeiro engenho de açúcar do Brasil). Existe um elemento extremamente interessante nesta estratégia açucareira lusa. Enquanto outras nações européias queimavam seus judeus, hereges e bruxos, os portugueses esvaziaram suas prisões e enviaram os criminosos condenados para a colonização de suas terras no Novo Mundo. Os “degredados” foram encorajados à miscigenação com as escravas para produzir uma raça híbrida que pudesse sobreviver nos canaviais tropicais.

Por volta de 1500, entram em cena os mercadores holandeses; marinheiros habilidosos, tornaram possível um transporte mais barato — os escravos eram vendidos a crédito. Em breve, os holandeses estabeleceriam uma refinaria de açúcar em Antuérpia. O açúcar em estado bruto era enviado de Lisboa, Canárias, Brasil, Espanha e Costa Bárbara para ser processado nas refinarias de Antuérpia. O produto era, então, exportado para os Estados Bálticos, Alemanha e Inglaterra. No ano de 1560 o Rei Carlos V da Espanha já havia construído seus magníficos palácios, em Madrid e Toledo, com dinheiro proveniente de taxas cobradas sobre o comércio do açúcar. Nenhum outro produto influenciou tanto a história política do mundo ocidental como o açúcar. Ele foi a mola propulsora de grande parte da história do Novo Mundo. Os impérios português e espanhol cresceram rapidamente em opulência e poder.

Da mesma forma que os árabes, também eles entraram rapidamente em declínio. Só podemos especular sobre o fato desse declínio ter sido biológico, ocasionado pela embriaguez de açúcar ao nível da corte. Entretanto, lá estava a Inglaterra esperando para recolher os cacos. A principio a Rainha Elisabeth I evitou institucionalizar a escravidão nas colônias britânicas, considerando-a “detestável”, uma coisa que poderia “atrair a vingança dos céus” sobre seu reino. Em 1588 seus escrúpulos sentimentais foram superados. A Rainha concedeu uma carta real, estendendo seu reconhecimento à Real Companhia de Aventureiros da Inglaterra na África, concedendo-lhe assim um monopólio de Estado sobre o tráfico de escravos na África Ocidental.

Nas Índias Ocidentais, os espanhóis, seguindo a trilha de Colombo, haviam exterminado a população nativa e introduzido escravos africanos para trabalhar em seus canaviais. Em 1515, monges espanhóis ofereciam US$500 em ouro, como empréstimo, a quem iniciasse um engenho de açúcar. Posteriormente a Armada inglesa expulsaria os espanhóis. Os escravos refugiaram-se nas montanhas e começaram uma luta de guerrilhas. Os ingleses anexaram as ilhas por tratados formais; o monopólio da Coroa instalou seus capatazes nos canaviais e assumiu o controle do tráfico escravo.

O caldo fermentado da cana era transformado em rum. Os primeiros mercadores de rum traziam a aguardente para Nova York e Nova Inglaterra, onde era trocada por valiosas peles com os índios norte-americanos. Um penny de rum comprava muitas libras de pele que, por sua vez, poderiam ser vendidas na Europa por uma pequena fortuna. Em suas viagens ao Ocidente, a Real Companhia dos Aventureiros da Rainha faria uma visita à costa ocidental da África em busca de escravos; estes eram, então, transportados às índias Ocidentais e vendidos aos plantadores para que plantassem mais cana, fizessem mais melado e rum. Açúcar e pele para a Europa. Rum para os índios americanos. Melado para os colonos norte-americanos.

Este tráfico triangular duraria até que as terras em Barbados e outras ilhas britânicas do Caribe se tornassem gastas, exauridas, esgotadas. Onde nada mais poderia crescer.

O tráfico de açúcar havia se tornado tão lucrativo que por volta de 1660 os ingleses estavam a ponto de ir à guerra para manter seu monopólio. Os Atos de Navegação de 1660 tiveram como objetivo prevenir o transporte de açúcar, tabaco ou qualquer outro produto das colônias americanas para qualquer porto fora da Inglaterra, Irlanda e possessões britânicas. As colônias desejavam serem livres para fazer comércio com todas as potências européias. A mãe Inglaterra desejava proteger suas rendas e manter o inestimável monopólio naval. Ela possuía a Armada Real. As colônias não tinham poder de fogo; assim, a Inglaterra dominava os mares… e controlava a indústria e o comércio açucareiro. Por volta de 1860 a palavra açúcar havia se transformado em sinônimo de dinheiro, em inglês.

Embora alguns historiadores norte-americanos prefiram argumentar que foi a taxa britânica sobre o chá que precipitou a guerra da independência americana, outros apontam o Ato do Melado (Molasses Act), de 1733, que estabelecia pesadas taxas sobre o açúcar e o melado procedentes de outras terras que não as ilhas açucareiras do Caribe. Os armadores da Nova Inglaterra entraram no lucrativo comércio de escravos, melado e rum. Uma carga de rum era levada para a costa de escravos na África, onde era trocada por negros; estes eram levados de volta às Índias Ocidentais e vendidos aos ávidos senhores ingleses. Ali pegavam uma carga de melado que traziam de volta à colônia para ser destilado em rum e distribuído entre seus alcoolizados clientes locais. Muito antes do Boston Tea Party, o consumo anual de rum nas colônias americanas era estimado em quase 15 litros/homem, mulher e criança. O Ato do Melado, de 1733, impôs uma séria ameaça, não apenas ao ciclo comercial das colônias americanas mas, igualmente, à sede pelo demoníaco rum.

“Nenhum barril de açúcar chega à Europa sem que esteja banhado em sangue. Diante da miséria destes escravos qualquer pessoa de sentimento deveria renunciar a este artigo e recusar-se a um prazer que só se toma possível com as lágrimas e mortes de incontáveis criaturas infelizes”.

Assim escreveu o filósofo francês Claude Adrien Helvetius, na metade do século dezoito, quando os franceses colocavam-se na dianteira do comércio açucareiro. A Sorbonne o condenou; os padres persuadiram a corte de que ele estava cheio de idéias perigosas; afinal, retratou-se – em parte para salvar a própria pele – e seu livro foi queimado pelos carrascos. Helvetius disse em público aquilo que muita gente pensava em segredo.

O estigma da escravidão perseguia o açúcar por todos os países, particularmente a Inglaterra.

O açúcar tornara-se em todo o mundo uma fonte de riqueza pública e importância nacional. Através de taxas e impostos cobrados sobre o açúcar, o governo tomara-se um cúmplice do crime organizado. Fortunas estavam sendo acumuladas pelos senhores, plantadores, mercadores e armadores; e a única preocupação da realeza européia era como tirar sua fatia do bolo.

Foram necessários três séculos para que a consciência européia se tocasse ao ponto de formar a primeira Sociedade Anti-Sacarita, em 1792. Em breve o boicote inglês ao açúcar se espalharia por toda a Europa. As Companhias Britânicas das Índias Ocidentais – atoladas até o nariz com o comércio do ópio -, aproveitando o tema escravidão, realizaram uma campanha publicitária usando o boicote ao açúcar para praticar inovações moralistas.

“O açúcar das Índias Orientais não é produzido por escravos” era seu lema no século XVIII. “Armazéns B. Henderson China — Rye Lane Peckhan — informa respeitosamente aos amigos da África que tem à venda um sortimento de bolas de açúcar (rapaduras), tendo escrito em letras douradas: O Açúcar das Índias Orientais Não É Produzido por Escravos.” Em letras menores trocavam em miúdos: “Uma família, usando 2,5 quilos de açúcar/semana, se usar o açúcar das Índias Orientais em vez do das Índias Ocidentais, por um período de 21 meses, evitará a escravidão ou o assassínio de uma criatura humana. Oito dessas famílias irão, em 19,5 anos, evitar a escravidão ou o assassínio de cem outras criaturas”.

O governo de Sua Majestade, com interesses tanto na escravidão quanto no açúcar, falava grandiosamente sobre o Império. A Inglaterra era o centro da indústria açucareira mundial. “O prazer, a glória e o esplendor da Inglaterra foram impulsionados mais pelo açúcar do que por qualquer outro artigo, inclusive a lã”, diria Sir Dalby Thomas. “A impossibilidade de ir-se avante sem escravos nas Índias Ocidentais estará sempre a evitar que o tráfico venha a diminuir. A necessidade, a absoluta necessidade de prosseguir, será, já que não existe outra, a sua desculpa”, afirmaria uma outra eminente figura política da época.

Não demorou muito para que o Império Britânico se tornasse totalmente dependente do açúcar. A vontade tornara-se necessidade, voracidade, dependência. Açúcar e escravidão eram inseparáveis sendo, portanto, defendidos juntos.

Quando as Índias Ocidentais Britânicas foram assoladas por revoltas de escravos, os colonos, em menor número e vivendo em constante terror, solicitaram proteção à Coroa. “Não podemos permitir que as colônias detenham ou desencorajem, em qualquer grau, um tráfico tão benéfico a esta Nação”, foi dito no Parlamento. “O tráfico escravo e a conseqüência natural (dele) resultante pode ser, com justiça, estimada como uma inesgotável fonte de riqueza e poderio naval para esta Nação”, diria um outro bastião do Império Britânico.

Os franceses foram os primeiros a abolir por lei o tráfico de escravos, no ano de 1807. Passara um outro quarto de século de agitação até que a emancipação fosse proclamada nas colônias britânicas em 1833.

Comentários Conceição Trucom: e a estória macabra continua até os anos de hoje, quando TODA A HUMANIDADE É ESCRAVA doentia do açúcar.

Um exemplo triste é observar quantas livrarias, sebos, cinemas, teatros ou lojas de instrumentos musicais existem em sua cidade x farmácias, padarias e supermercados?

Texto extraído do livro Sugar Blues – William Dufty – Editora Ground (Capítulo “O Mercado Branco – páginas 15 a 30). Livro esgotado só encontrado em sebos.

Sugar Blues é uma expressão idiomática que significa um estado de depressão ou melancolia revestido de medo, ansiedade e desconforto físico. Múltiplas penúrias físicas e mentais causadas pelo consumo de sacarose refinada.

Reprodução permitida desde que mantida a integridade das informações, citada a autoria e a fonte https://www.docelimao.com.br/site

1 de outubro de 2019

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