Por Luiz Carlos Lisboa, em 21/01/1986 *
O exercício de todo e qualquer aprendizado, reconhecido como bom e necessário pelo homem, encontra resistência na medida em que é capaz de modificar hábitos e estruturas de pensamentos que transmitem a impressão de segurança psicológica. Isso é facilmente reconhecido por todos, mas um pouco mais distante da unanimidade fica o fato de que o homem resiste de forma disfarçada à compreensão de coisas bastante simples, usando como armas o esquecimento, a distração, uma ‘surdez’ peculiar e até mesmo interferências como a própria loquacidade.
A diferença entre ouvir e escutar, para usar símbolos destacados e compreensíveis, dá a medida exata dos níveis de atenção com que alguns fatos são distinguidos e outros neutralizados. Resumindo, o homem ouve o que deseja ouvir, ignorando através de diferentes recursos o que lhe parece novo e perigoso.
Não apenas as pessoas, mas as coisas e as situações ‘falam’ muitas vezes de modo eloqüente, expressando significados que nem sempre interessa absorver. No que diz respeito à fala comum, é notável o caráter seletivo do ouvido humano no dia-a-dia da vida social. As confirmações de expectativas, as mensagens ‘neutras’ e os registros de perigo são normalmente absorvidos e decodificados. O resto é ignorado como entulho ou material perigoso, e essa diferença nem sempre é estabelecida em nível consciente. Ocorre no entanto – e nisso está o tom dramático do fenômeno – que essa sucata contém elementos preciosos de real aprendizado, evitados precisamente pelo seu caráter modificador e revolucionário para a ‘alma’ do receptor. É certo que os estratos mais profundos da mente humana exercem um papel censor em relação a esse material, sentido vagamente como estranho e possível produtor de tensões.
O aprendizado não se faz, compreendido na sua acepção mais larga, de alguém preparado tecnicamente para isso. O emissor pode não ter sequer idéia de que está veiculando informação preciosa – embora supérflua e irrelevante do ponto de vista de um pragmático, cético ou imbecil moral. Aprende-se a sentir, a perceber o sentido íntimo das coisas, a descobrir a imensidão escondida nos pequenos momentos, a ver a mentira imersa na verdade aparente; aprende-se numa fração de segundo, e já não pode fazer nada com esse aprendizado, para desapontamento dos mais ‘práticos’. Nesse aprender pelo ouvido, a sabedoria sopra onde bem entende, é ato heróico enquanto não se sabe ouvir e não se experimentou a simplicidade essencial. De posse disso, não é nada – não no sentido de nada custar, mas no de não ter continuidade ou produzir resultado útil. O aprendizado verdadeiro é totalmente gratuito.
A fala fluente pode ser um modo de interferência, de ‘ruído’ que se interpõe entre o aprendizado e o próprio ouvido. Como é impossível falar e ouvir ao mesmo tempo a loquacidade é um exorcismo contra a percepção perigosa, aquela que fura os tímpanos e escandaliza pela simplicidade.
No diálogo, mal se termina de ouvir o que se ouviu, seja a palavra, seja seu sentido profundo, seja o que ela significa, dispara-se o discurso inócuo destinado a calar a voz secreta de toda fala. A partir daí é o outro que pode começar a entender, percebendo além da algaravia do matraquear das palavras vazias alguma luz a mais que vai clarear seu caminho, se ele tiver ouvidos apurados e alguma sorte.
O homem comum quer aprender, desde que esta aprendizagem possa beneficiá-lo de algum modo. Nele, os elementos que julgam se determinada coisa é benéfica ou não, são geralmente condicionados pelos temores e anseios do homem padrão, moldado pela cultura. Por isso, os ‘censores’ comportam-se de maneira essencialmente conservadora, aceitando o conhecido e recusando o novo que pode vir a conter dúvidas a respeito do ‘sistema’ ideológico predominante. Sendo o conhecimento invariavelmente neutro, na realidade a profusão indiscriminada de ‘opiniões’ pode estar funcionando como recursos defensivos inúteis e prejudiciais ao homem, que perpetua em verdades os cegos circuitos que caracterizam as intermináveis discórdias. De certo modo, aprender é modificar o que essa filtragem impede completamente.
Então, ouvir de maneira apropriada é ouvir integralmente, sem julgamentos apriorísticos ou interpretações baseadas em dados testados há muito tempo. O homem fecha seus sentidos diante de um fato que ele não considera digno de real interesse, de atenção. Dele pode reter no máximo o esqueleto do discurso, sua estrutura semântica, seus ornamentos. A mensagem não lhe chega ao espírito, porque ‘não tem o que esperar’ daquela fonte. É o caso do intelectual cultivado, que não dá ouvidos ao que de aparência modesta, rude ou exótica. Como acontece com o ‘politizado’, em relação aos representantes de um grupo ou classe de interesses bem identificados, segundo ainda o absorvido por uma convicção ardente, do tipo religioso ou ideológico que não quer ouvir nada que não seja uma comprovação de suas convicções.
* Artigo publicado no jornal “O Estado de São Paulo”
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