Paulo Antônio de Almeida Bastos
“A produção de carne para consumo humano usa uma quantidade absurda de água e promove a degradação (e extinção) de fontes e reservas de água doce. Para evitar o desperdício de água, costumamos nos preocupar em fechar a torneira ao escovar os dentes, evitar lavar a calçada, consertar vazamentos em casa e ser breve no banho”, escrevem Guilherme Carvalho biólogo, representante da Humane Society International (HSI) no Brasil e coordenador do departamento de Meio Ambiente da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB) e Raquel Ribeiro jornalista, editora do livreto Impactos sobre o meio ambiente do uso de animais para alimentação, produzido pela SVB, em artigo publicado na revista Plurale, em 25-04-2011. Segundo eles “não conseguiremos alcançar um resultado expressivo se não repensarmos nossos hábitos de consumo. Reduzir ou eliminar os produtos animais da nossa dieta, acredite, é o jeito mais eficaz de economizar água “.
A Água
Condicionante do clima e dos diferentes habitats, integrante de processos biológicos e termodinâmicos, provedora do meio para reações químicas e para a vida de uma infinidade de organismos, a água é peça-chave na composição da biosfera em todas as suas formas e níveis de organização. Embora cerca de 70% da superfície do nosso planeta sejam cobertos de água (1), a maior parte está nos oceanos: apenas 2,5% da água do planeta é doce. Estima-se que, nos últimos 60 anos, a população mundial duplicou, enquanto o consumo de água se multiplicou por sete (2). Segundo relatório divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU) após a Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Sustentável, realizada na África do Sul em 2002, cerca de 1,2 bilhão de pessoas não têm acesso a água potável (3).
O que a produção de carne tem a ver com isso? As atividades agrícolas no Brasil, país com o maior volume de água doce do mundo (12% do total), respondem por pelo menos 61% da demanda de água nacional (4). Acontece que uma grande parte de tudo o que é cultivado destina-se à produção de ração para animais de produção, tanto para consumo interno quanto para exportação. Globalmente, mais de 60% do milho e 97% do farelo de soja viram alimento para bois, porcos, aves e peixes. Um volume de água expressivo é também poluído durante a vida dos animais e no processamento das carcaças. E os produtores e consumidores não pagam os custos ambientais da utilização e poluição de tanta água.
Se toda a água consumida no processo de produção animal for contabilizada (não apenas na dessedentação, como também na irrigação dos pastos e cultivos, no processamento das carcaças e em outras etapas da produção), o resultado é assustador. Durante os procedimentos de abate e pós-abate, usa-se água na sangria, escaldagem, depenagem, evisceração e lavagem. Considerando-se estimativas do número de animais abatidos diariamente no Brasil, pode-se concluir que são gastos mais de 450 milhões de litros d’água por dia apenas no processo de abate (5). Utiliza-se ainda quantidades significantes de água na limpeza dos caminhões, granjas, equipamentos, no descarte de subprodutos e resíduos e em uma série de outras etapas ocultas da cadeia de produção animal. Não é à toa que a quantidade de água utilizada nesta indústria é tão grande: apenas em 2008, foram criados e abatidos mais de 67 bilhões de animais terrestres, mundialmente, visando a produção de carnes, leite e ovos (6). No Brasil, o rebanho bovino ultrapassa os 200 milhões de animais – há mais bois que gente – e mais de 5,5 bilhões de frangos de corte são criados e abatidos anualmente (7).
Bilhões de litros d’água ainda são gastos na irrigação para a produção de grãos. Aqui a soja tomou conta dos cerrados do Centro-Oeste e agora migra para o Norte, em busca de água: Tocantins, Mato Grosso, Rondônia, Pará… Considerando que boa parte da água doce mundial se destina à produção de grãos para alimentação de animais – em especial dos rebanhos e plantéis norte-americanos e europeus – conclui-se que a água vira ração. Hoje, exportar grãos ou carne significa, em última instância, exportar água – de graça.
Poluição das águas e fonte de doenças
O setor de produção industrial de carnes, laticínios e ovos polui significativamente os corpos d’água em várias etapas: na produção de grãos para fabricar ração, através da utilização de fertilizantes químicos e agrotóxicos; na criação dos animais – com a liberação de exorbitantes volumes de dejetos animais –; e na etapa de abate e processamento, em que sangue, tecidos e outros resíduos são frequentemente descartados sem tratamento. O manejo dos dejetos animais nas granjas industriais é um ponto crítico, uma vez que uma enorme quantidade de excrementos é gerada em regiões relativamente pequenas. Mesmo quando aplicados às lavouras com a intenção de adubar a terra, os dejetos excedem a capacidade de aproveitamento do solo, resultando em contaminação de lençóis freáticos e aquíferos e comprometimento da qualidade da terra. Muitas vezes, entretanto, a destinação dada aos excrementos é ainda pior, recorrendo-se ao despejo direto em corpos d’água. Junto aos resíduos gerados nas etapas de abate e processamento, estes descartes contribuem significativamente com a eutrofização dos corpos d’água, que se caracteriza pela proliferação excessiva de plantas e microrganismos aquáticos em virtude do aporte aumentado de nutrientes como fósforo e nitrogênio, e traz diversos malefícios à vida animal ali e ao ecossistema como um todo. A maior parte desta matéria orgânica traz consigo, ainda, patógenos e resíduos de antibióticos, representando também um risco à saúde pública.
Em Santa Catarina, estado tradicionalmente produtor de aves e suínos, quase todos os rios estão poluídos e encontram-se valores de pH da água próximos a 3,0 (muito ácido). No Estado de São Paulo, a bacia do Rio Jundiaí, que tem 38,5% de sua área ocupada com pastagens e abriga granjas industriais de outros animais, vem apresentando uma piora na qualidade da água em termos de matéria orgânica biodegradável, fósforo total e coliforme fecal.
Não apenas os patógenos e a poluição da água ameaçam a saúde da população; também o uso rotineiro de antibióticos traz sérios problemas. Sua administração indiscriminada – com fins de promoção de crescimento e de prevenção de doenças potencialmente ocorrentes nos inadequados ambientes industriais –, favorece o surgimento de linhagens bacterianas resistentes. Os resíduos destas drogas, despejados no solo ou diretamente nos corpos d’água, também trazem problemas à saúde ambiental e humana.
Desmatamento e assoreamento dos rios
A disponibilidade e qualidade dos recursos hídricos estão intimamente ligadas à existência das florestas, principalmente das matas ciliares, que protegem nascentes e mananciais. Grande parte dessa vegetação é destruída para dar lugar à atividade agropecuária. Um exemplo impactante é nosso Cerrado: entre as consequências ambientais da expansão da fronteira agrícola está o comprometimento das bacias hidrográficas de todo o bioma, com prejuízo direto para a biodiversidade e para os recursos hídricos. Na bacia do Araguaia-Tocantins, cujas nascentes estão no centro do Cerrado, houve uma elevação do volume de sedimentos transportados pelo rio, erosões e até mudanças na temperatura e precipitação ao longo da bacia. Essas mudanças mostram a resposta geomorfológica, em curto prazo, ao desflorestamento em um grande sistema fluvial prístino. Isso quer dizer que não há paralelo no planeta em termos de alterações ambientais tão drásticas e rápidas em um rio de grande porte (8). A ocupação agropecuária nos frágeis solos arenosos das cabeceiras do rio Araguaia, principal curso d’água do Cerrado, e importante corredor de biodiversidade, já produziram voçorocas, focos erosivos de grande porte, dando origem ao assoreamento e gerando graves prejuízos (9). Outro exemplo? As nascentes do Xingu, rio com mais de 2.700 km de extensão, também estão comprometidas pelo assoreamento provocado pelas enormes áreas desmatadas de fazendas de pecuária e soja.
Fontes:
(1) https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/xx.html#Geo
(2)http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1521&id_pagina=1
Paulo Antônio de Almeida Bastos é mestre em lingüística na UFMG/MG, defensor do vegetarianismo vegano e dos animais.
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