Fonte: The New York Times
Autor: Moises Velasquez-Manoff (*)
Tradução especial para Doce Limão: Professional Translations
Permitida a reprodução desde que citada a fonte e o tradutor
Um transplante de medula óssea tratou o paciente de leucemia – e ao mesmo tempo – acabou com seus delírios. Alguns médicos acham que sabem por quê.
O homem tinha 23 anos quando os delírios começaram. Ele estava convencido de que seus pensamentos estavam vazando de sua cabeça e que outras pessoas podiam ouvi-los. Quando ele assistia TV, ele achava que os atores estavam sinalizando para ele, tentando se comunicar. Isto fazia que ficasse irritado, ansioso e não conseguia dormir.
O Dr. Tsuyoshi Miyaoka, um psiquiatra que tratou esta pessoa na Escola de Medicina da Universidade de Shimane, no Japão, acabou por lhe diagnosticar esquizofrenia paranoide. Ele então prescreveu uma série de drogas antipsicóticas. Nenhuma ajudou. No jargão dos médicos, os sintomas do homem foram descritos como “resistentes ao tratamento”.
Um ano depois, a condição do homem piorou. Ele desenvolveu fadiga, febre e falta de ar, e descobriu-se que tinha um câncer no sangue chamado leucemia mielóide aguda. Precisava de um transplante de medula óssea para sobreviver.
Após o procedimento veio o milagre. Os delírios e a paranoia do homem quase desapareceram completamente. Sua esquizofrenia aparentemente desapareceu.
Transcorridos alguns anos, hoje “ele está sem qualquer medicação e não apresenta sintomas psiquiátricos”; O Dr. Miyaoka disse-me por e-mail que de alguma forma, o transplante curou a esquizofrenia do homem.
Um transplante de medula óssea basicamente reinicia o sistema imunológico. A quimioterapia mata os seus glóbulos brancos existentes, e novas células sanguíneas surgem das células-tronco do sangue transplantado do doador.
Não é sensato exagerar na extrapolação deste acontecimento a partir de um único estudo de caso, e é possível que tenham sido as drogas que o homem tomou como parte do procedimento de transplante que o ajudou. Não obstante sua recuperação sugere que seu sistema imunológico estava de alguma forma, controlando seus sintomas psiquiátricos.
À primeira vista, a ideia parece bizarra – o que o sistema imunológico tem a ver com o cérebro? -, mas isso coincide com um crescente volume de literatura que sugere que o sistema imunológico está envolvido em perturbações psiquiátricas, desde depressão até transtorno bipolar.
A teoria tem uma longa história, embora negligenciada. No final do século 19, os médicos notaram que, quando as infecções atravessavam as enfermarias psiquiátricas, as febres resultantes pareciam causar uma melhora em alguns pacientes mentalmente doentes e até catatônicos.
Inspirado por essas observações, o médico austríaco Julius Wagner-Jauregg desenvolveu um método de infecção deliberada com malária em pacientes psiquiátricos para induzir a febre. Alguns de seus pacientes morreram no tratamento, mas muitos outros se recuperaram. Ele ganhou o prêmio Nobel em 1927.
Um estudo de caso muito mais recente relata como os sintomas psicóticos de uma mulher que tinha um transtorno de esquizofrenia-afetiva (que combina sintomas de esquizofrenia e um transtorno de humor e depressão) desapareceram após uma infecção grave com febre alta.
Médicos modernos também observaram que pessoas que sofrem de certas doenças autoimunes como o lúpus, podem desenvolver o que parece doença psiquiátrica. Esses sintomas provavelmente resultam do sistema imunológico que ataca o sistema nervoso central ou de causar uma inflamação mais generalizada que afeta o funcionamento do cérebro.
De fato durante os últimos 15 anos tem surgido um novo campo de categorização na medicina chamado neurologia autoimune. Cerca de duas dúzias de doenças autoimunes do cérebro e do sistema nervoso tem sido descritas. A mais conhecida é provavelmente a encefalite anti-receptora NMDA, que ficou famosa pela autobiografia de Susannah Cahalan, “Brain on Fire”.
Esses distúrbios podem se assemelhar ao transtorno bipolar, epilepsia e até mesmo demência, (como são diagnosticados inicialmente). Mas quando prontamente tratados com terapias poderosas de supressão imunológica, o que parece ser demência, muitas vezes, inverte. A psicose evapora. A epilepsia desaparece. Pacientes que há apenas uma década eram internados, ou até morriam, melhoram e voltam para casa.
Sabe-se que essas doenças são extremamente raras, mas a existência delas sugere que pode haver outros distúrbios imunológicos relacionados com o cérebro e o sistema nervoso que ainda não conhecemos.
O Dr. Robert Yolken, professor de neurovirologia do desenvolvimento da Universidade Johns Hopkins, estima que cerca de um terço dos pacientes com esquizofrenia demonstram alguma evidência de distúrbios imunológicos. “O papel da ativação imunológica em distúrbios psiquiátricos graves é provavelmente a coisa mais interessante que se deve estudar sobre esses distúrbios”, ele disse.
Estudos sobre o papel dos genes na esquizofrenia também sugerem envolvimento imunológico, uma descoberta que, para o Dr. Yolken, ajuda a resolver um antigo quebra-cabeça. Pessoas com esquizofrenia tendem a não ter muitos filhos. Então, como os genes que aumentam o risco de esquizofrenia, supondo que existam, persistiram nas populações ao longo do tempo?
Uma possibilidade é que retenhamos os genes que possam aumentar o risco de esquizofrenia, porque esses genes ajudaram os humanos a combater patógenos no passado. Algumas doenças psiquiátricas podem ser uma consequência inadvertida, em parte, de ter um sistema imunológico agressivo.
Isto nos traz de volta ao paciente do Dr. Miyaoka. Existem outras explicações possíveis para sua recuperação. O Dr. Andrew McKeon, neurologista da Clinica Mayo em Rochester, Minnesota (um centro de neurologia autoimune) aponta que ele poderia ter sofrido de uma doença chamada síndrome para neoplásico.
Isto acontece quando o sistema imunológico de um paciente com câncer ataca um tumor, neste caso, a leucemia. Mas, como algumas moléculas do sistema nervoso central se parecem com as moléculas tumorais, o sistema imunológico também ataca o cérebro, causando problemas psiquiátricos ou neurológicos.
Esta condição foi importante historicamente porque levou os pesquisadores a considerar o sistema imunológico como uma causa de sintomas neurológicos e psiquiátricos. Eventualmente, eles descobriram que o sistema imunológico sozinho, não propagado por malignidade, poderia causar sintomas psiquiátricos.
Outro estudo de caso realizado na Holanda aponta esse relacionamento ainda misterioso. Neste estudo, no qual o Dr. Yolken é coautor, um homem com leucemia recebeu um transplante de medula óssea de um irmão esquizofrênico. Ele venceu o câncer, mas desenvolveu esquizofrenia. Quando ele compartiu o mesmo sistema imunológico, ele desenvolveu sintomas psiquiátricos semelhantes.
A questão mais importante é esta: se tantas síndromes podem produzir sintomas semelhantes à esquizofrenia, devemos examinar mais de perto a entidade que chamamos de esquizofrenia?
Alguns psiquiatras afirmaram que há muito tempo existiam muitos caminhos para as “esquizofrenias” Talvez um desses caminhos seja autoinflamatório ou autoimune.
Se esta ideia se concretizar, o que podemos fazer sobre isso? O transplante de medula óssea é uma intervenção extrema e arriscada, e mesmo que a base teórica fosse completamente sólida – o que ainda não é – é improvável que se torne um tratamento generalizado para transtornos psiquiátricos.
O Dr. Yolken diz que, por enquanto, os médicos que tratam de pacientes com leucemia e que também têm doenças psiquiátricas devem monitorar seu progresso psiquiátrico após o transplante, para que possamos aprender mais.
Pode haver outros tratamentos mais brandos. Uma década atrás, o Dr. Miyaoka descobriu acidentalmente um. Dois pacientes com esquizofrenia que estavam internados e praticamente catatônicos (1) foram tratados com minociclina, um antibiótico antigo usado para acne. Ambos melhoraram completamente com o antibiótico. Quando o Dr. Miyaoka pediu parar com o antibiótico, a psicose voltou. Então ele prescreveu aos pacientes uma dose baixa em forma contínua e os dispensou.
(1) Nota do tradutor: Catatonia é uma perturbação do comportamento motor que pode ter tanto uma causa psicológica ou neurológica.
A minociclina já foi estudada em outros casos. Ensaios em escala maior sugerem que é um tratamento complementar efetivo para a esquizofrenia. Alguns argumentam que funciona porque diminui a inflamação no cérebro. Mas também é possível que isso afete o microbioma (comunidade de micróbios que habitam o corpo humano) e, portanto, muda a forma como o sistema imunológico funciona.
O Dr. Yolken e colegas recentemente exploraram essa ideia com uma ferramenta diferente: probióticos, micróbios pensados para melhorar a função imunológica.
Ele se concentrou em pacientes com mania, devido a que estes pacientes têm um sinal imunológico relativamente claro. Durante os episódios maníacos, muitos pacientes apresentam níveis elevados de citosinas, moléculas secretadas pelas células imunes.
Ele estudou 33 pacientes com mania que já tinham sido hospitalizados tomando um probiótico profilaticamente. Durante 24 semanas, os pacientes que tomaram o probiótico (juntamente com seus medicamentos usuais) tiveram 75% menos chances de serem internados no hospital por ataques maníacos, em comparação com pacientes que não o fizeram.
O estudo é preliminar, mas sugere que a abordagem função imunológica pode melhorar os resultados de saúde mental e que a adequação do microbioma, pode ser uma maneira prática e econômica de fazer isso.
Pontos de inflexão ocasionalmente têm aparecido como oportunidades na história da medicina, quando condições anteriormente intratáveis ou mesmo mortais, de repente se tornam tratáveis ou evitáveis. Às vezes causam uma mudança na forma como os cientistas entendem os transtornos.
Parece que agora se tem alcançado esse limiar com certas doenças autoimunes raras do cérebro.
Não muito tempo atrás, elas poderiam ser uma sentença de morte ou causa de internação e dependência. Agora, com tratamento agressivo direcionado ao sistema imunológico, os pacientes podem se recuperar.
Será possível aplicar isto numa grande quantidade de transtornos psiquiátricos? Ninguém sabe a resposta ainda, mas é um momento emocionante para acompanhar este desenvolvimento.
(*) Moises Velasquez-Manoff é um escritor de ciências, autor de “An Epidemic of Absence” (Uma nova maneira de entender Alergias e Doenças Autoimunes). Também é editor da revista Bay Nature, é escritor da seção Opinião do New York Times.
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