Ana Primavesi *
Um grãozinho de trigo caiu na terra, separado dos irmãos, sozinho, abandonado. Nenhum armazém protetor, nenhum de seus irmãos foliões, nenhuma segurança nem bem estar. Sozinho jazia na terra úmida, tremendo de medo. Um besouro grande e cascudo apareceu. Será que iria comê-lo?
O besouro sorriu: “Não como trigo, sou coprófago, como somente excrementos de animais.”
“Que horror!”, apavorou-se o grão de trigo.
O besouro não se incomodou: “Por quê? Ele perguntou. “Cada um de nós vive segundo a programação que o Criador nos deu. E se cumpro minha missão, posso ser tão satisfeito quanto você. Já pensou se ninguém devorasse excrementos? O mundo seria inabitável!”
Tudo isso era demais para o grão de trigo: “E eu? “, ele quis saber. “Você é tão inteligente, conte-me, quem sou eu?”
“Olhe, disse o besouro: você não é nada. É somente um pontinho com a capacidade de captar vida e de germinar, o epitélio germinativo. E para que você faça isso como deve, carrega junto um computadorzinho ultra-minúsculo e um pacotinho de ração de emergência.”
“É a era da informática? “, o grãozinho quis saber.
“Para Deus, a informática sempre existiu. O homem é que só a descobriu agora”, revelou o inseto.
Apavorado, o grão de trigo começou a chorar: “A água está me molhando, está penetrando em meu corpo. Estou inchando! Oh, meu Deus, eu vou arrebentar!
”O besouro observou-o gravemente. “Sei”, disse secamente. “Vai inchar até estourar.”
“E depois?”, o grãozinho quis saber.
“Depois você vai formar uma planta de trigo, como programada: alta, linda, com três ou mais colmos, com espigas graúdas, cheias de grãos de trigo iguais a você.”
“E para que serve então meu computadorzinho, se tudo é programado?”, o grão de trigo quis saber.
“Bem”, ponderou o besouro, “você é geneticamente programado,
como os homens dizem.
Mas entre a programação e o ambiente deve existir
uma completa concordância.”
“Nem sempre existe no solo tudo o que foi
programado para sua formação.”
Nesse momento, entrou vida no grão, e o germe moveu-se pela primeira vez. O computadorzinho genético começou a conferir a programação com velocidade alucinante para poder estabelecer o programa definitivo, segundo o qual a planta iria crescer e se formar. O programa básico estava no grão, mas a matéria-prima se desenvolveria. Analisou também a água que tinha penetrado no grão e iniciou um acelerado diálogo com os elementos que cercavam e penetravam o trigo.
“Há nitrogênio?”, perguntou. “Pouco”, foi a resposta. “Maturação precoce!”, determinou o computador.
“Há fósforo?” “Pouco.” “Temos de reduzir o transporte de energia!”
“Há boro?” “Pouquíssimo.” “Então o programa será para não formar açúcares complexos, somente os simples.”
“Há zinco?” “Existe o suficiente.” “A programação é alterar por causa do fósforo.”
”Há cobre?” “Muito pouco.” “Então vamos reduzir as desidrogenases e oxidases ao mínimo”, mandou o computadorzinho. “Vai haver muitas flores estéreis, mas não tem outro jeito!”
O grão de trigo angustiou-se: “Que tipo de terra é essa?”
O besouro fez cara feia: “Olhe, meu caro, a terra é boa, mas você não foi programado para ela. Você, para essa terra, é exótico, não é um ecótipo como eu, adaptado ao lugar em que tem de viver.”
“Mas o homem que me plantou prometeu jogar também nutrientes na terra”, desesperou-se o grão de trigo.
“Eu conheço isso”, disse o besouro, “ele jogará somente três a quatro nutrientes. Vai ajudar um pouco, mas você vai virar uma planta fraca e doentia, não podendo formar proteínas, açúcares complexos, substâncias aromáticas, enzimas, vitaminas, hormônios, corantes e outros. Vai precisar de muitos defensivos para não ser morto por fungos e pulgões. Pobre trigo. Mas em contrapartida, vai ser rico em resíduos tóxicos. Ai do homem que comer de seus grãos!”
O grão de trigo começou a chorar amargamente:
“Por quê me plantaram aqui?
Por quê, por quê, por quê?”
E o sonho dele, de dar força e vitalidade aos homens,
fugiu como o orvalho ao sol.
(*) Ana Primavesi
Reprodução permitida desde que mantida a integridade das informações, citada a autoria e a fonte www.docelimao.com.br
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