Texto extraído da seção Sinapse do JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO, publicado em 26.10.2004.
…Ela entrou, sentou no meu divã e disse: “Acho que estou ficando louca”!
Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais de sua loucura.
Disse: “um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões..é uma alegria!
Entretanto, faz uns dias.. fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas…algo banal…mas eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles aneis perfeitamente ajustados..a luz se refletindo neles..tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral da catedral gótica.
De repente a cebola (…) se transformou em ‘obra de arte’… O pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões…
Agora, tudo o que vejo me causa espanto!”
Ela se calou, esperando meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e tirei as ‘odes elementares’ de Pablo Neruda. Procurei a ‘ode da cebola’ e lhe disse: essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola (…) “rosa de água com escamas de cristal”. Percebeu? Você não está louca. Você ganhou olhos de poeta (…).
Ver é muito complicado. Isso é estranho, porque os olhos são, de todos os órgão do sentidos, os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro.
Mas há algo na visão que não pertence à física. Willian Blake sabe disso e afirmou: “A árvore que um sábio vê não é a mesma que vê o tolo”. Uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um Ipê que florescia porque sujava a frente de sua casa. Seus olhos não viam a beleza, mas apenas o lixo!
Adélia Prado disse: “Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra”. Drummond viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.
Há muitas pessoas de visão perfeita que não vêem. Não é bastante não ser cego para ver as coisas e as flores. “Não é o bastante abrir a janela para ver os campos e os rios” escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural… precisa ser aprendido(…). O ZEn-budismo concorda e afirma que toda a espiritualidade é uma busca de experiência chamada “Satori” ou o “terceiro olho” (…).
A diferença está no lugar onde os olhos são guardados. Se na caixa de ferramentas, são usados apenas como ferramentas numa função prática. Mas, se guardados numa “caixa de brinquedos”, eles se transformam em órgãos do prazer… São como olhos de crianças…
É assim… Onde você guarda seus olhos???
Guarde-os numa caixa de brinquedos, assim como as crianças, pois a cada objeto tirado da caixinha chamada vida…
A magia de enxergar pode transformar algo muito comum numa obra de arte…
Faça como Drummond, transforme “aquela pedra” em uma obra de arte. Transforme-a numa bela poesia!!!
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