Talento para orgânicos

Marcos Palmeira *

Filho do cineasta Zelito Viana e sobrinho de Chico Anísio, o ator Marcos Palmeira sempre esteve inserido no mundo do cinema e da televisão, mas foi outra influência familiar que o aproximou do meio ambiente. Seu avô Sinval Marcos Palmeira, um político comunista, tinha uma fazenda de 5 mil hectares no sul da Bahia. Era uma fazenda com mata, onde o avô tentava implantar idéias conservacionistas que iam desde usar esterco como fonte de energia até evitar desperdícios, derrubada de árvores e o desvio de rios.

Com a morte do avô, Marcos se viu defendendo a forma de pensar do velho Sinval, mas não conseguiu convencer a família. “Fui para lá ajudar a cuidar dos cavalos. E tinha muita divergência. Eu via um morro pelado e perguntava por que não deixavam as árvores crescerem, por que o gado tinha que pastar no morro se tinha tanta baixada. Aí todo mundo dizia que o Marquinhos era um filósofo. Bonitinho, mas não entende nada de fazenda”, conta. Sem querer bater de frente, o ator comprou uma fazenda na região serrana do Rio, com o objetivo inicial de criar cavalos. Quando abriu os olhos, já era um produtor e defensor engajado da agricultura orgânica. Que mudou a sua forma de ver o mundo.

Como você descobriu os orgânicos?

Marcos Palmeira – Em 1997 resolvi ter a minha fazenda. Comprei uma terra em Teresópolis, queria mexer com leite e cavalo. Não tinha ainda visão de preservação, nada disso. Tinha um amigo na Bahia, o Rildo de Oliveira Gomes, que falou: “Marquinhos, o que você comprar eu vou tomar conta. Não se preocupe, eu vou cuidar para você. Só se preocupa em ter pasto e água”. Fiquei um ano e meio procurando até que um dia me ligaram e disseram que tinha um suíço que queria sair do Brasil, vender sua fazenda de porteira fechada, e estava baratíssimo. Me encantei pela fazenda. Cheguei tipo cinco horas da tarde, vi a fazenda no lusco-fusco, fechei o negócio às oito horas da noite e no dia seguinte ele foi para a Suíça.

A fazenda mexia com orgânicos?

Marcos Palmeira – Não, mas mexia com verdura, salada, produzia para o Carrefour. Decidi continuar produzindo.

Você deixou de lado o plano de trabalhar com cavalo e gado?

Marcos Palmeira – Não, porque o Rildo era um ótimo queijeiro. E tinha espaço na fazenda. Mas ficamos focados na coisa das alfaces. O Rildo nunca tinha visto um pé de alface, mas começou a se apaixonar pelo negócio. Até o dia em que a gente descobriu que ninguém comia o que estava produzindo. Isso foi uma coisa bem chocante.

Como assim?

Marcos Palmeira – Eu vi que as pessoas que trabalhavam na horta, hoje são 28, não comiam o que plantavam. Pensei que tinha alguma coisa errada. “Nós não vamos comer, doutor. A gente está botando veneno aí, faz mal. Meu filho está com problema na vista, eu estou com um problema na coluna, minha mulher diz que é do veneno…”.

O que você fez?

Marcos Palmeira – Procurei João Carlos Ávila, que é o maior especialista em biodinâmica no Brasil e trabalha na Associação Biodinâmica, lá em Botucatu. O Rildo foi em um encontro de agricultura orgânica no Brejal, no Rio, e voltou contando que tinha encontrado uma pessoa que era mais louca do que a gente. “O velho fala com formiga, uma loucura”, dizia. Essa pessoa era o João Carlos Ávila, que veio para a fazenda e realmente virou a nossa cabeça. Nos convenceu que o nosso foco tinha que ser a terra, e não a planta.

Como assim?

Marcos Palmeira – A agricultura tradicional se preocupa com o produto em si. O que importa é aquela alface sair e vender. No orgânico, o que importa é a qualidade do solo. A alface, a cenoura, são conseqüências. A qualidade do solo é que vai te garantir produzir aquele produto durante a vida inteira, se você quiser. Por exemplo, deu muita formiga na fazenda. O convencional manda você meter remédio na formiga. Mas qual o problema da formiga? Ela não pode comer a sua alface, mas ela pode existir na sua fazenda. Você tem que criar uma forma de a repelir da alface e dar condições para que ela sobreviva. Se não você vai passar a vida inteira lutando contra a formiga e botando adubo na terra, porque ela já vai estar totalmente desgastada. Caiu a ficha e eu comecei a me interessar. Fui ler, participar de encontros e de congressos como ouvinte. Começamos a trabalhar com galinha d’angola para controlar as formigas. A gente já tinha um gadinho para controlar os carrapatos. Tiramos todos os remédios, o carrapaticida, o vermífugo. Decidimos trabalhar com ervas, com fitoterapia. Quando vi estava completamente envolvido, descrente de todo o convencional, que passou a ser um papo para boi dormir.

Mas não teve uma queda de produção?

Marcos Palmeira – Logo no início teve. O Rildo era o cara da produção e eu era o teórico do negócio. Ele abria as acelgas e gritava: “Olha, orgânico é essa merda aqui!” – as acelgas estavam cheias de bicho. E eu dizia calma, a gente vai chegar lá. Tinha umas discussões barra pesada. Porque o cara que fica no campo perde uma acelga e fica indignado.

Como era a fazenda?

Marcos Palmeira – A fazenda era bem devastada, toda pelada, não tinha nem passarinho por causa da contaminação de agrotóxico. Em volta, todos são produtores convencionais. Agora as aves voltaram. Hoje é uma variedade enorme, tem canário-da-terra… Meu sonho é ver um tucano cruzando a fazenda. Nesse dia eu vou estar realizado. Mas a fazenda começou a ser produtiva.

Em quanto tempo?

Marcos Palmeira – Comprei a fazenda em janeiro de 1997, em outubro eu entrei em contato com o João Carlos Ávila. Foi bem rápido, foi uma sorte. Se eu não tivesse percebido que os empregados não comiam o que plantavam, talvez eu nem tivesse me tocado. Ia estar produzindo e vendendo os produtos para o Carrefour até hoje. Depois contratei um consultor que tinha conhecimento de cultura orgânica, mas não entendia de administração. Nesse meio tempo, o Rildo morreu. Ele tomou um tiro na cabeça durante um assalto na fazenda em 2000. De lá pra cá , fiquei patinando na mão de todo mundo, eu também não tenho tempo de ficar lá dentro. E cada um quer fazer uma coisa, tem uma idéia genial. E tome dinheiro! Mas em 2005 eu conheci o Aly Ndiaye, um senegalês que entrou para a fazenda, pegou os números para ele e há quatro meses não boto mais um tostão.

Para quem você vende?

Marcos Palmeira – Eu vendo só para o supermercado Zona Sul, e só o que produzo, os orgânicos. Eu tentei construir uma parceria com a Horta e Arte, em São Paulo, para fazer uma rede de produtores e transformar o orgânico em uma coisa mais popular, deixar de ser elitista. Mas eu só me ferrei, em tudo o que eu me envolvi o interesse nunca era exatamente naquilo. As pessoas tinham interesse no meu nome ou em usar o que eu já tinha, como meu caminhão. Nunca tinha benefício para mim. Meu consultor fazia política com todo mundo e eu só percebi isso depois. Hoje ninguém pede nada. Oferecem uma parceria, é diferente.

Dá um exemplo de parcerias que deram certo e que não deram certo.

Marcos Palmeira – A Horta e Arte. Ela trabalhava com 250 pequenos produtores no estado, todos com problemas no mercado. Eu tinha acesso ao mercado do Rio de Janeiro e cheguei a fornecer para as Sendas, Pão de Açúcar e Zona Sul. Sempre orgânicos. Eu pensei em fazer uma parceria, aumentar o meu mix e entrar no mercado com frutas, tipo abacaxi, melão, pêra, morango. Fui para São Paulo com esse consultor a tiracolo e conheci os “cabeças” da Horta e Arte. Eles foram na fazenda, onde eu produzia 100 produtos orgânicos. Aí o consultor virou para mim e falou: “Você vai produzir só quatro produtos, que é mais que suficiente, e a gente vai entrar em São Paulo”. Nisso, deixei o Zona Sul. Na época eu tinha uma receita de 50 mil reais, mas com a mudança ela caiu para 25 mil. Foi quando me toquei que tinha tomado uma volta. Os caras ganharam mercado no Rio de Janeiro, ganharam forte, e eu perdi o mercado que tinha. Eu só não quebrei por causa da Rede Globo, o meu salário permitiu que eu segurasse. Se eu fosse um produtor que vivesse daquilo, teria quebrado completamente.

Como se recuperou?

Marcos Palmeira – Comecei tudo de novo. Procurei o Zona Sul e eles voltaram a vender a minha marca, Vale das Palmeiras. Mas levei um tempo para reconquistar esse mercado. Foi quando conheci o Aly, que trabalha com pequenos produtores. Hoje faço uma coisa que nunca tinha feito antes, que é me aproximar dos produtores do Rio.

Você está intermediando os outros?

Marcos Palmeira – Exatamente. Se o produtor tem excedente de mercado, eu compro por um preço justo. Eu produzo 300 litros de leite e descobri que perto de Friburgo, em Além Paraíba, tem um fazendeiro que produz leite orgânico. Ele bota na cooperativa a 20 centavos. Fiz um acordo em que pago um real pelo litro dele. Levantei o produtor e quase dobrei a minha produção de queijo. Liguei para a Sendas, falei com Arthur Sendas, que ficou interessado. Essa coisa de ser ator ajuda, mas não mantém. Agora eu botei até meu rosto na embalagem, apelei geral.

Fornece também para lojas pequenas?

Marcos Palmeira – No auge das minhas despesas eu ataquei de tudo. Entregava em supermercado, restaurante e cesta a domicílio. Aí comecei a ficar louco, porque não tinha estrutura. O mercado de orgânicos ainda é muito complexo. Meu produto ainda é mais barato que o convencional. Porque não leva fertilizante, é preço de produção. Mas quando chega no mercado, eles botam 150% em cima. Dizem que se botar barato o povo não compra. Essa consciência ainda é difícil. Eu queria experimentar um sacolão orgânico para ver se não ia sair que nem água. Tudo a um real, 50 centavos.

A certificação encarece?

Marcos Palmeira – Eu estava com a certificação do Instituto Biodinâmico de São Paulo. É muito caro, é meio absurdo o que eles cobram. Para o pequeno produtor é difícil. Agora eu saí e estou na Associação de Agricultores Biológicos do Estado do Rio de Janeiro, uma certificadora que tem um custo muito menor.

Você faz tudo isso por negócio?

Marcos Palmeira – A fazenda hoje se paga, então eu acredito nela como negócio. Produzir alimento lida diretamente com o problema brasileiro da fome. Você produz e viabiliza as pessoas comerem um alimento saudável. Eu me apaixonei por isso, e transcendeu a produção. Hoje sou associado do Greenpeace. Eles mandam para mim documentários sobre soja transgênica, estou meio envolvido. Se acordar, o Brasil pode se tornar o maior celeiro de produtos orgânicos do mundo. O potencial de produção é enorme. A fazenda tem que ser um negócio, ela tem que ser lucrativa para que a vida daquelas pessoas seja viável. Na fazenda da minha família na Bahia, eles produzem uma média de 10 caminhões de esterco por dia. Eles têm búfalo, que poderia ser certificado orgânico.

Você já foi de carro para lá?

Marcos Palmeira – Já, e fiquei chocado com o que vi. Meu pai viajou comigo, eu olhando a paisagem degradada, e chegou uma hora em que ele me perguntou se eu não conseguia ver beleza em nada daquilo. Falei que não, que estava pensando no que poderia ter sido. Eu já passei pelo interior de São Paulo, Minas, Goiás e Mato Grosso e é impressionante: tudo parece que é o mesmo lugar. Não tem mais diversidade. É tudo soja.

Qual a proporção que os orgânicos tomam de seu tempo?

Marcos Palmeira – Quase 50%.

Quantas palestras você faz?

Marcos Palmeira – Umas dez por ano. Fui a Rondônia, Prudentópolis (PR), interior de Alagoas. E sempre para pequenos produtores. Chego nos lugares, na Biofach por exemplo, e eles me perguntam se eu tenho interesse. A de Prudentópolis foi assim. Na décima vez que me convidaram, aceitei. Não sei nem aonde isso vai chegar. Minha mãe fala que sou muito fundamentalista.

Nestes nove anos, com que cara foi ficando a fazenda?

Marcos Palmeira – Eu interferi o mínimo possível na fazenda. Não se mata nada, não se corta nada, não se caça nada. Caçar já fazia parte da Bahia. O curral é forrado de teia de aranha. Quem chega acha que sou descuidado, mas você não tem uma mosca lá dentro. As aranhas ficam felizes, não perturbam a vida de ninguém. Os pássaros começaram a voltar porque a gente deixou o mato crescer. Tenho tatu e tamanduá no meio da lavoura. Separamos um cantinho nos brócolis para o tatu. Ele vai lá e come só dois. Tem também jacu e siriema. Os bichos estão se aproximando. Outro problema que eu identifiquei lá foi a baixa auto-estima das pessoas da fazenda. Eram desgrenhadas, maltratadas, sujas. Eu tenho paranóia com dente e contratei um dentista. Terça e sábado era dia de dentista e fiz a boca de todo mundo. O retireiro não falava, a gente não sabia qual era o grau de escolaridade que ele tinha. Depois que botou o dente, passou a falar e recebe as pessoas na fazenda, anota, é um cara super inteligente.

Qual o lugar mais feio e degradado que você conhece no Brasil?

Marcos Palmeira – O Rio Grande do Sul, eu acho. Não sei se por ter sido onde se iniciou o plantio de soja e houve desmatamento violento. Na Amazônia você sabe que está destruído, mas quando chega a imponência da mata ainda te dá um refresco, ainda tem o que cuidar. O Rio Grande do Sul me dá a impressão de que já não tem muita coisa. Tem os pampas. Outro estado é Espírito Santo.

Achei que você ia responder Rio de Janeiro.

Marcos Palmeira – É, então eu mudo minha resposta: acho que o Rio é o pior lugar do Brasil hoje. Não tem ordem, política, todo mundo faz o que quer. Tem que ter uma organização. A gente está desenvolvendo um projeto de agricultura orgânica na aldeia dos xavantes, no Mato Grosso. O que eles compravam na cidade, eles estão plantando na aldeia. O problema é que a gente não se organiza. As pessoas não se enxergam inseridas no meio ambiente. Para mim esse é o grande problema, e está ligado com todas as relações que a gente tem. Você não sabe quem é o seu vizinho, não cumprimenta o seu porteiro. Ninguém está muito interessado no problema dos outros. Eu preciso ficar atento para não me dispersar na minha carreira como ator, que estou construindo. Mas esse outro lado me dá muito tesão. Eu seria capaz de abrir mão de tudo para estar nessa luta ambientalista. Mas tendo cuidado para amanhã não estar sendo queimado. Hoje eu estou mais ligado na ação na minha fazenda, nas parcerias, nesses encontros, nessas pessoas de Prudentópolis. Por que ali as pessoas estão preocupadas com os outros.*

Entrevista concedida a Marcos Sá Corrêa, Manoel Francisco Brito, Lorenzo Aldé, Andreia Fanzeres e Juliana Tinoco publicada no site www.oeco.com.br.

24 de setembro de 2019

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