Conceição Trucom*
As lembranças mais felizes que tenho das escolas que frequentei durante infância e adolescência, são as ligadas com aqueles professores que me deixaram espaço para ser diferente, e acreditar que minha inteligência ia além das medições tradicionais do ambiente escolar.
Competições não me atraíam, mas história (todas), arte, teatro e tudo que estivesse ligado com uma sensibilidade mais aflorada que o comum, me faziam esquecer do tempo, e, muitas vezes, compensava os momentos cruéis do aprendizado social que as escolas nos cobram.
A matéria a seguir, ilustra por um lado a feliz iniciativa de professores que ofereceram uma ótica mais sensível e filosófica da nossa educação. Eles decidiram educar passando por temas polêmicos como vegetarianismo, ecologia, cuidados com os animais, inversão de valores, etc. Só de colocarem em foco tais assuntos, se exporem, mas ainda assim proporcionarem o acesso dos alunos aos filmes, debates, reflexões, vivências desta perspectiva do mundo; já merecem nota 1000.
Por outro lado, a matéria apresenta a resistência do conservadorismo, o medo de mexer em assuntos polêmicos, de se expor e a dificuldade de exercitar o mais importante papel das escolas: ampliar horizontes, perspectivas, dar abertura para adultos maiores, libertos de tantas e tantas convenções.
Entendo que a proposta destes professores, diferente de catequisar vegetarianos, foi a de apresentar espaços e novas perspectivas para sermos diferentes, sensíveis, mais humanos e, usarmos nossas inteligências (decisões, escolhas) diante de informações, debates, vivências e reflexões amplas em parceria com professores-amigos-catalizadores.
Eles juntaram forças e introduziram o tema vegetarianismo na sala de aula. Conheça essa iniciativa de dois professores de uma escola estadual de São Paulo
Texto extraído da Revista Vegetarianos - Ano 1 - Número 4
Fernanda Mendes Moraes é professora de biologia e Leon Denis, professor de Filosofia. Com uma iniciativa inovadora, esses dois professores da Escola Estadual Pio Teles, localizada na cidade de São Paulo, criaram um projeto batizado de Mens sano in coipore sano (Mente sã em corpo são), introduzindo o tema do vegetarianismo na sala de aula. Apesar de todas as dificuldades encontradas, o projeto, iniciado no segundo semestre de 2006, já colheu alguns frutos. A Revista dos Vegetarianos foi conhecer de perto esse trabalho e bateu um papo com os dois professores, que contaram todos os detalhes dessa brilhante iniciativa. Confira.
Como surgiu a idéia de inserir o vegetarianismo na sala de aula?
Fernanda: assisti ao documentário A Carne é Fraca (Instituto Nina Rosa) e comentei sobre o filme com o Leon. Depois foi surgindo a idéia do projeto, associando-o ao abandono de animais, já que tínhamos essa problemática na porta da escola. Resolvemos, como protetores de animais e vegetarianos, mostrar aos alunos a possibilidade de um mundo melhor a partir de nossa conduta.
Leon: em meados de maio, estávamos conversando sobre como nos tomarmos vegetarianos e lembro que a Fernanda perguntou: Você já assistiu A Carne é fraca? O que você acha de passarmos este filme para os alunos? Como estávamos no meio do bimestre, sugeri que ficasse para o próximo. E neste intervalo começamos a colher o material que iríamos utilizar na sala de aula.
Qual o objetivo do projeto?
Fernanda: mostrar aos alunos que a alimentação está diretarnente ligada à protecão animal e a sentimentos que foram sendo deixados de lado, tais como compaixão, harmonia, ecologia, etc.
Leon: conscientizar os alunos sobre os malefícios que o consumo de carne traz tanto para eles quanto para o meio ambiente, além de ser uma falta de respeito e compaixão para com os animais.
Quantos alunos ao todo participaram do projeto?
Fernanda e Leon: aproximadamente 300 alunos entre diurno e noturno. Infelizmente, 50% do todo que pode sido trabalhado se tivéssemos tido apoio do restante do corpo docente.
Que tipo de atividades foram realizadas dentro e fora da sala de aula?
Leon: dentre as atividades desenvolvidas em sala de aula escolhemos as expositivas, nas quais apresentei ética ambiental, história e especismo e direito dos animais.
Fernanda: fizemos um café da imanhã vegetariano, assistimos a filmes, fizemos cartazes para conscientização dos alunos sobre abandono de animais, discussão sobre desmatamento, violência e especismo. Realizamos arrecadação de ração para que urn grupo de alunos, junto conosco, levasse à casa de um protetor de animais; e temos programado visitas à UIPA (União Internacional Protetora dos Animais). Assim, eles puderam observar de perto as dificuldades que temos em acabar com essa problemática dos animais de rua.
Vocês utilizam algum material de apoio?
Fernando e Leon: nós utilizamos as obras Libertação Animal e Ética Prática, de Peter Singer, o simples e didâtico Vegetarianismo - Elementos para uma Conversa Sobre, de Marly Winckler, Direito dos Animais, de Laerte F. Levai, o documentário A Carne é Fraca, os filmes: Instinto, Super Size Me, Earthlings - Terráqueos e Irmão Sol Irmã Lua; textos extraídos de sites como: tribuna animal, SVB.org, nutriveg, vegetarianismo, entre outros, além de revistas de nutrição, saúde, meio ambiente, ciências e vegetarianismo. Para registrar na prática: máquina fotográfica e o refeitório da escola.
Como foi a aceitação dos alunos?
Leon: como todo assunto polêmico, de início, há um certo receio, um desdém, um certo "não me interessa". Mas, com o decorrer das aulas, nasce uma abertura às respostas e soluções teóricas e práticas dadas pelo vegetarianismo e as responsabilidades do homem pelo planeta.
Fernanda: excelente, houve bastante envolvimento. Como eu peguei a parte mais prática das atividades, acredito que os alunos já estavam integrados. Eu participei da teoria passando alguns textos para o Leon e depois conversando com os alunos.
Quantos se tornaram vegetarianos?
Fernanda e Leon: uma rnédiade 10% dos alunos, enfrentando todas as barreiras existentes: social, cultural, familiar, etc.
Houve alguma barreira da diretoria da escota?
Fernanda: se tivessem ocorrido barreiras, na minha visão teria sido bom, rnas o que houve foi total desinteresse e omissão. Isso ao rneu ver foi o mais triste de tudo.
Leon: como a Fernanda disse, houve desinteresse. Não recebemos apoio direto e nem indireto. Inclusive, em duas situações distintas, a coordenadora pedagógica perguntou se o que estávamos fazendo era parte de dois projetos que estavam sendo realizados por outros professores.
E quanto aos professores de outras disciplinas?
Leon: acredito que a própria não adesão ao projeto, por classificar o assunto corno de menor importância, cria uma barreira ou um boicote. Segundo relato dos alunos, alguns professores criticaram nossa defesa aos animais, afirmando e legitimando a criação dos mesmos para o consumo humano. Houve até proposta de levar os alunos ao zoológico, o que vai na contramão do nosso trabalho de conscientização. O difícil não é convencer os jovens a aderir à nobre causa vegetariana, obviamente fundada em pesquisas sérias que visam ao bem estar humano e não-humano, e sim convencer os adultos que trazem o peso de uma tradição equivocada.
Fernanda: desinteresse, parecia que éramos invisíveis no que fazíamos. Alguns até abordavam o que estava sendo feito, mas sem o menor envolvimento. Outros projetos que aconteciam na escola não abordavam assuntos como ética, posicionamento, filosofia, alimentação, mudanças. Esses outros projetos eram os melhores, pois era mais fácil de serem trabalhados sem muitos questionarnentos.
Algum pai entrou em contato para criticar ou elogiar esta iniciativa?
Fernanda: não, escutei muitos alunos comentando que os pais estavam estranhando um trabalho em que seu filho teria que fazer um prato vegetariano para ser apresentado na escola. Fizemos um café da manhã onde cada aluno procurou a receita e teve que colocar a mão na massa. Foi um sucesso. Houve o processo de experimentar o novo, se socializar com outras turmas, de rir, brincar e falar sério sobre o abandono de animais e até mesmo do abate dos animais. Eles observaram que havia urn modo de se alimentar bem, sem sacrificar o prazer e tantas vidas.
Leon: diretamente não. Mas alguns alunos comentam certa estranheza ou oposição que os pais fazem em casa.
Vocês pretendem continuar o projeto no próximo ano letivo?
Leon: com certeza. Pode parecer pouco a adesão de 20 ou 25 alunos em um todo de mais ou menos 300, rnas não é, se levarmos em conta o peso da tradição milenar do consumo de carne e de desrespeito para com os outros seres viventes. É gratificante, rnesmo com tanta oposição, ver o resultado na saúde física e mental desses novos adeptos e obviamente desejamos ver esse grupo crescer. Continuarei sim, no próximo ano, e espero ter a adesão de outras disciplinas como Geografia, História e Química.
Fernanda: esse projeto nunca terá fim. A coisa mais difícil é que nunca estamos na mesma escola. Mas levarei este projeto comigo para onde for. Queria ter a oportunidade de levar esse projeto com toda a seriedade que ele merece a todas as escolas públicas e particulares deste País. Sonho? Pode ser, mas como dizia um grande mestre que passou por aqui: existe um mundo melhor. Portanto, farei o que puder por esse mundo melhor. E ajudar a colocar a sementinha no coração de cada aluno já é um grande passo.
Finalizando: Fernanda e Leon são, certamente, professores inesquecíveis!
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Reprodução permitida desde que mantida a integridade das informações e citadas a autora e a fonte: www.docelimao.com.br
* Conceição Trucom (Instagram: @conceicaotrucom) é química, pesquisadora, palestrante e escritora sobre temas voltados para alimentação natural, bem-estar e qualidade de vida. Possui 10 livros publicados, entre eles O Poder de Cura do Limão (Editora Planeta), com meio milhão de cópias vendidas, Mente e Cérebro Poderosos (Pensamento-Cultrix) e Alimentação Desintoxicante (Editora Planeta).