As festas profano-religiosas. EP02: BUMBA MEU BOI

Guilherme Trucco 

Segundo Câmara Cascudo, “não há auto dramático que se assemelhe ao Bumba Meu Boi em qualquer literatura oral do mundo, pela vastidão do complexo etnográfico, documentário inapreciável de informação, arquivo verbal de sinceridades registradas anominalmente”. Cada estado, cada município ou região possui suas figuras, suas danças e suas músicas. O Bumba Meu Boi do Maranhão trata-se de um dos mais belos e plurais. 

Geralmente, a encenação trata do seguinte enredo: Numa fazenda de gado, o escravo Pai Francisco mata um boi de estimação de seu senhor para satisfazer o desejo de sua esposa grávida, Mãe Catirina, que quer comer a língua do boi. Quando descobre o sumiço do animal, o senhor fica furioso e, após investigar entre seus escravos e índios, descobre o autor do crime e obriga Pai Francisco a trazer o boi de volta. Curandeiros (pajés) são convocados para salvar o boi e, quando o boi ressuscita urrando, todos participam de uma enorme festa para comemorar o milagre. 

O enredo é tipicamente brasileiro, portanto. Tratando do tema da escravidão, atrelado à religiosidade indígena ou de matriz africana. Ainda há o caráter do católico transformado em mágico, dado que para os praticantes da Encantaria, o boi ressuscita pois o espírito encantado de Dom Sebastião de Portugal está dentro do boi. 

Atualmente, existem em torno de cem grupos de bumba-meu-boi no Estado do Maranhão subdivididos em diversos sotaques. Cada sotaque tem características próprias que se manifestam nas roupas, na escolha dos instrumentos, no tipo de cadência da música e nas coreografias. 

Em decorrência do tipo de sotaque, a dinâmica seguida na dramatização do auto, apresenta diferentes tipos de procedimento e sequência. O sotaque enquanto estilo do Bumba meu boi, agrupa diferentes práticas na poética das toadas, nas possíveis coreografias dançadas, e principalmente nos instrumentos musicais que compõem o grupo. As toadas possuem a característica de dar união a todos os elementos do Boi, alinhavados ao estilo do sotaque. Os principais sotaques existentes são: Sotaque de matraca, Sotaque de Zabumba, Sotaque de Orquestra, Sotaque da Baixada, Sotaque Costa de Mão. 

As toadas do Bumba meu Boi possuem um caráter eminentemente oral. São criadas novas toadas a cada ano, que são compostas geralmente de improviso durante os ensaios do boi. Toda a encenação dramática utiliza-se de 10 a 15 toadas para ser completa. 

“Não anoto minhas toadas porque não tem necessidade, já que a toada do ano passado não nos interessa para esse ano. Nós não ligamos para documentação porque encaramos o negócio assim: se fulano gravou minha toada e vai cantar no Interior, em qualquer lugar, eu me sinto até satisfeito, elogiado. Mas hoje, o pessoal do Boi de Orquestra são altos compositores, só falam em dinheiro e cobram para gravar uma toada deles.”

Zé Olhinho, Memória de Velhos: Depoimentos, 1999 

O caráter de oralidade é imprescindível, levando em conta que não são repassadas de forma redigida em nenhum momento para os participantes do boi, é necessário o processo de repetição nos ensaios, para que todos as decorem e possam responder com o coro. Além disso, elas nunca estão “prontas”, dado que pelo processo de oralidade, desde o momento de sua criação, até a apresentação, elas vão sofrendo alterações orgânicas através dos ensaios. 

“Toada a gente cria e faz. Tendo inspiração, é coisa rápida. Quando se tem certa convivência com a brincadeira, cantando em boi há muito tempo, fazer uma toadinha não é muito difícil. Qualquer pessoa pode fazer depende de querer [...]. Mas para a toada ser bem bonita, não é preciso que a letra dela seja bonita, é importante que ela tenha peso, firmeza e desembaraço. Dá energia na hora de cantar.”

Zé Olhinho, Memória de Velhos: Depoimentos, 1999 

São as toadas que pontuam a passagem da dramatização de uma cena para a próxima, os principais tipos de toadas são: 

Toada de Guarnecer (guarnicê)

É a toada de abertura dos trabalhos, para reunir o batalhão. 

1. Maracanã levantou bandeira

Na folha da Palmeira

Aonde a brisa do Brasil vai lançar

É pra dar sinal

Que eu vou reunir meu batalhão

No peso do maracá

Minhas toadas eu já espalhei

Deixa contrário saber

O mundo inteiro vai cantar meu guarnecer

(Humberto, Bumba-meu-boi do Maracanã) 

Toada de Lá vai

Anunciação de que o boi está chegando. 

1. Lá vai, lá vai

Vai dando “murro”

E põe tudo em seu lugar

As colunas são pesadas

Só Deus pode derribar

Sai da frente, mafioso

Deixe meu touro passar

(Mané Onça, Bumba-meu-boi da Madre Deus) 

2. Lá vai, lá vai

Meu batalhão resistente

Vaqueiro, avisa contrário

Que o que é bom custa caro

É melhor se “redar” da frente.

(Toada do Bumba-meu-boi de São Francisco) 

Toada de Chegada ou Cheguei

É cantada antes da licença, anuncia a chegada do batalhão e todos os seus componentes. 

1. Vem ver boi, morena,

Vem ver boi:

Este é o Folclore maranhense,

Eu lhe garanto com firmeza.

Se a minha cidade é linda, a sua é uma beleza!

Pois entre na roda e brinque com Paz do Brasil

Esse touro é obra da natureza

(João do Sá Viana, Bumba-meu-boi de Apolônio) 

2. Sonhei que neste ano eu vinha te visitar

Garota, venha receber o meu batalhão

Que acabou de chegar

Este é um compromisso

Que eu tive de assumir

Agora, só me resta te abraçar

Para matar a saudade

Do ano que eu fiquei sem te ver

(Leonardo Terera, Bumba-meu-boi de Iguaíba) 

Toadas de Cordão 

Neste momento, o Amo pode puxar outras toadas que marcaram o decorrer do ano, chamadas de Toadas de Cordão. Podem tratar de temas variados como política, futebol ou fatos cotidianos. Após a as toadas de cordão, inicia-se a parte central da representação do auto dramático.

1. Maranhão, meu tesouro, meu torrão

Fiz esta toada, pra ti Maranhão

Maranhão, meu tesouro, meu torrão

Fiz esta toada, pra ti Maranhão

 

Terra do babaçu

Que natureza cultiva

Esta palmeira nativa

É que me dá inspiração

 

Na praia dos Lençóis

Tem um touro encantado

e o reinado

Do Rei Sebastião

 

Sereia canta na proa

Na mata do guariatã

Terra da pirunga doce

E tem a gostosa pitombatã

 

E todo ano a grande festa da juçara

 no mês de Outubro no Maracanã

 No mês de Junho tem o bumba meu bo

Que é festejado em louvor a São João

 

O amo canta e balança o maracá

A matraca e pandeiro

É quem faz tremer o chão

Esta herança foi deixada por nossos avós

Hoje cultivada por nós

pra compor tua história, Maranhão

(Humberto Maracanã – 1983)

 

2. O Brasil ainda está de sentimento

Do seu filho querido que Jesus levou

Tancredo Neves tu foste a alegria do povo

Despertou um Brasil novo

Presidente de valor

Pai da nova democracia

Esperança e alegria

De um povo trabalhador

Homem honesto, de pensamentos positivos

Em nome do Pai Criador

Tancredo Neves nos deixou.

Hoje só nos resta a lembrança

Teu nome no Brasil

De Norte a Sul se ver.

Tancredo Neves onde tu estiver

Tem alguém pra te dizer

Que os brasileiros não esqueceram de você

(Lelé do Bumba-meu-boi de Maracanã) 

Toada de Louvação 

Neste momento o louva-se o boi. É após esta toada que ocorre a matança do boi. 

1. São João, meu São João

Eu vim pagar a promessa

De trazer este boizinho

Pra alegrar a tua festa

(Toada boi da lua – César Teixeira) 

2. Passei numa aldeia bonita

Numa aldeia bonita

Eu vi cinco caboclas

Dizendo chegou a tua vez

A cabocla Lindaura

A cabocla Iara

A cabocla Ita

Jurema, Jandira

Esse touro é de vocês

(Humberto Maracanã - Bumba meu boi Maracanã – sotaque de matraca – 2011) 

Toada do Urrou 

Trata-se da última cena da dramatização, neste momento é chamado o pajé para ressuscitar o boi, que urra e sai dançando. Atualmente, infelizmente, o papel do pajé tem sido substituído pelo médico veterinário. 

1. Meu povo preste atenção

Nos poetas do Maranhão,

Que canta sem ler num livro,

Já tem em decoração

Todo ano, mês de junho

Temos por obrigação

De cantar toada nova

Em louvor a São João

Viva a estrela do dia

Cobrindo a noção nação.

(Coxinho do Bumba-meu-boi de Pindaré) 

Com o fim do auto dramático, iniciam-se as cantorias das toadas de respostas, também chamadas toadas de pique. São embates entre cantadores, com toadas improvisadas. Depois da peleja, o cantador puxa a toada de Despedida, que é o adeus do Bumba-meu-boi, e ainda pode-se cantar a Toada de Retirada. 

Toada de Despedida 

1. Adeus, garota querida

Chegou a hora da nossa separação

Você sabe que eu tenho compromisso

E, além disso, trabalho

Pra São João

Sei que vai sentir saudades de mim amanhã

Tu és joia preciosa

Te deixo uma rosa dos jardins do Maracanã.

(Humberto do Maracanã) 

2. Digo: “adeus morena “

Eu vou cantar noutro terreiro

Meu São João me chamou

Eu vou levar meu galheiro

(Zé Olhinho- Bumba-meu-boi de Santa Fé) 

COMPLEMENTE TUDO ISSO COM: Farofa Literária - EP02 - BMBA MEU BOI do Maranhão

As festas profano-religiosas. EP01: A CONGADA

Guilherme Trucco é escritor paratiano, sua obra é inteiramente dedicada a explorar a cultura popular da brasilidade, e seus desdobramentos profundos, através de uma literatura ficcional voltada para o Realismo de Encantaria, uma mistura à brasileira de realismo mágico, realismo animista e o surrealismo. É autor dos livros de ficção: Saída Bangu, Vocês vão ter que me engolir, e Nó na Garganta, além de ser colunista no portal Ludopédio.
Seu Blog: https://www.guilhermetrucco.com e seu Instagram: @gui_trucco


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* Conceição Trucom
 (Instagram: @conceicaotrucom) é química, pesquisadora, palestrante e escritora sobre temas voltados para alimentação natural, bem-estar e qualidade de vida. Possui 10 livros publicados, entre eles O Poder de Cura do Limão (Editora Planeta), com meio milhão de cópias vendidas, Mente e Cérebro Poderosos (Pensamento-Cultrix) e Alimentação Desintoxicante (Editora Planeta).

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