Guilherme Trucco
Segundo Câmara Cascudo, “não há auto dramático que se assemelhe ao Bumba Meu Boi em qualquer literatura oral do mundo, pela vastidão do complexo etnográfico, documentário inapreciável de informação, arquivo verbal de sinceridades registradas anominalmente”. Cada estado, cada município ou região possui suas figuras, suas danças e suas músicas. O Bumba Meu Boi do Maranhão trata-se de um dos mais belos e plurais.
Geralmente, a encenação trata do seguinte enredo: Numa fazenda de gado, o escravo Pai Francisco mata um boi de estimação de seu senhor para satisfazer o desejo de sua esposa grávida, Mãe Catirina, que quer comer a língua do boi. Quando descobre o sumiço do animal, o senhor fica furioso e, após investigar entre seus escravos e índios, descobre o autor do crime e obriga Pai Francisco a trazer o boi de volta. Curandeiros (pajés) são convocados para salvar o boi e, quando o boi ressuscita urrando, todos participam de uma enorme festa para comemorar o milagre.
O enredo é tipicamente brasileiro, portanto. Tratando do tema da escravidão, atrelado à religiosidade indígena ou de matriz africana. Ainda há o caráter do católico transformado em mágico, dado que para os praticantes da Encantaria, o boi ressuscita pois o espírito encantado de Dom Sebastião de Portugal está dentro do boi.
Atualmente, existem em torno de cem grupos de bumba-meu-boi no Estado do Maranhão subdivididos em diversos sotaques. Cada sotaque tem características próprias que se manifestam nas roupas, na escolha dos instrumentos, no tipo de cadência da música e nas coreografias.
Em decorrência do tipo de sotaque, a dinâmica seguida na dramatização do auto, apresenta diferentes tipos de procedimento e sequência. O sotaque enquanto estilo do Bumba meu boi, agrupa diferentes práticas na poética das toadas, nas possíveis coreografias dançadas, e principalmente nos instrumentos musicais que compõem o grupo. As toadas possuem a característica de dar união a todos os elementos do Boi, alinhavados ao estilo do sotaque. Os principais sotaques existentes são: Sotaque de matraca, Sotaque de Zabumba, Sotaque de Orquestra, Sotaque da Baixada, Sotaque Costa de Mão.
As toadas do Bumba meu Boi possuem um caráter eminentemente oral. São criadas novas toadas a cada ano, que são compostas geralmente de improviso durante os ensaios do boi. Toda a encenação dramática utiliza-se de 10 a 15 toadas para ser completa.
“Não anoto minhas toadas porque não tem necessidade, já que a toada do ano passado não nos interessa para esse ano. Nós não ligamos para documentação porque encaramos o negócio assim: se fulano gravou minha toada e vai cantar no Interior, em qualquer lugar, eu me sinto até satisfeito, elogiado. Mas hoje, o pessoal do Boi de Orquestra são altos compositores, só falam em dinheiro e cobram para gravar uma toada deles.”
Zé Olhinho, Memória de Velhos: Depoimentos, 1999
O caráter de oralidade é imprescindível, levando em conta que não são repassadas de forma redigida em nenhum momento para os participantes do boi, é necessário o processo de repetição nos ensaios, para que todos as decorem e possam responder com o coro. Além disso, elas nunca estão “prontas”, dado que pelo processo de oralidade, desde o momento de sua criação, até a apresentação, elas vão sofrendo alterações orgânicas através dos ensaios.
“Toada a gente cria e faz. Tendo inspiração, é coisa rápida. Quando se tem certa convivência com a brincadeira, cantando em boi há muito tempo, fazer uma toadinha não é muito difícil. Qualquer pessoa pode fazer depende de querer [...]. Mas para a toada ser bem bonita, não é preciso que a letra dela seja bonita, é importante que ela tenha peso, firmeza e desembaraço. Dá energia na hora de cantar.”
Zé Olhinho, Memória de Velhos: Depoimentos, 1999
São as toadas que pontuam a passagem da dramatização de uma cena para a próxima, os principais tipos de toadas são:
Toada de Guarnecer (guarnicê)
É a toada de abertura dos trabalhos, para reunir o batalhão.
1. Maracanã levantou bandeira
Na folha da Palmeira
Aonde a brisa do Brasil vai lançar
É pra dar sinal
Que eu vou reunir meu batalhão
No peso do maracá
Minhas toadas eu já espalhei
Deixa contrário saber
O mundo inteiro vai cantar meu guarnecer
(Humberto, Bumba-meu-boi do Maracanã)
Toada de Lá vai
Anunciação de que o boi está chegando.
1. Lá vai, lá vai
Vai dando “murro”
E põe tudo em seu lugar
As colunas são pesadas
Só Deus pode derribar
Sai da frente, mafioso
Deixe meu touro passar
(Mané Onça, Bumba-meu-boi da Madre Deus)
2. Lá vai, lá vai
Meu batalhão resistente
Vaqueiro, avisa contrário
Que o que é bom custa caro
É melhor se “redar” da frente.
(Toada do Bumba-meu-boi de São Francisco)
Toada de Chegada ou Cheguei
É cantada antes da licença, anuncia a chegada do batalhão e todos os seus componentes.
1. Vem ver boi, morena,
Vem ver boi:
Este é o Folclore maranhense,
Eu lhe garanto com firmeza.
Se a minha cidade é linda, a sua é uma beleza!
Pois entre na roda e brinque com Paz do Brasil
Esse touro é obra da natureza
(João do Sá Viana, Bumba-meu-boi de Apolônio)
2. Sonhei que neste ano eu vinha te visitar
Garota, venha receber o meu batalhão
Que acabou de chegar
Este é um compromisso
Que eu tive de assumir
Agora, só me resta te abraçar
Para matar a saudade
Do ano que eu fiquei sem te ver
(Leonardo Terera, Bumba-meu-boi de Iguaíba)
Toadas de Cordão
Neste momento, o Amo pode puxar outras toadas que marcaram o decorrer do ano, chamadas de Toadas de Cordão. Podem tratar de temas variados como política, futebol ou fatos cotidianos. Após a as toadas de cordão, inicia-se a parte central da representação do auto dramático.
1. Maranhão, meu tesouro, meu torrão
Fiz esta toada, pra ti Maranhão
Maranhão, meu tesouro, meu torrão
Fiz esta toada, pra ti Maranhão
Terra do babaçu
Que natureza cultiva
Esta palmeira nativa
É que me dá inspiração
Na praia dos Lençóis
Tem um touro encantado
e o reinado
Do Rei Sebastião
Sereia canta na proa
Na mata do guariatã
Terra da pirunga doce
E tem a gostosa pitombatã
E todo ano a grande festa da juçara
no mês de Outubro no Maracanã
No mês de Junho tem o bumba meu bo
Que é festejado em louvor a São João
O amo canta e balança o maracá
A matraca e pandeiro
É quem faz tremer o chão
Esta herança foi deixada por nossos avós
Hoje cultivada por nós
pra compor tua história, Maranhão
(Humberto Maracanã – 1983)
2. O Brasil ainda está de sentimento
Do seu filho querido que Jesus levou
Tancredo Neves tu foste a alegria do povo
Despertou um Brasil novo
Presidente de valor
Pai da nova democracia
Esperança e alegria
De um povo trabalhador
Homem honesto, de pensamentos positivos
Em nome do Pai Criador
Tancredo Neves nos deixou.
Hoje só nos resta a lembrança
Teu nome no Brasil
De Norte a Sul se ver.
Tancredo Neves onde tu estiver
Tem alguém pra te dizer
Que os brasileiros não esqueceram de você
(Lelé do Bumba-meu-boi de Maracanã)
Toada de Louvação
Neste momento o louva-se o boi. É após esta toada que ocorre a matança do boi.
1. São João, meu São João
Eu vim pagar a promessa
De trazer este boizinho
Pra alegrar a tua festa
(Toada boi da lua – César Teixeira)
2. Passei numa aldeia bonita
Numa aldeia bonita
Eu vi cinco caboclas
Dizendo chegou a tua vez
A cabocla Lindaura
A cabocla Iara
A cabocla Ita
Jurema, Jandira
Esse touro é de vocês
(Humberto Maracanã - Bumba meu boi Maracanã – sotaque de matraca – 2011)
Toada do Urrou
Trata-se da última cena da dramatização, neste momento é chamado o pajé para ressuscitar o boi, que urra e sai dançando. Atualmente, infelizmente, o papel do pajé tem sido substituído pelo médico veterinário.
1. Meu povo preste atenção
Nos poetas do Maranhão,
Que canta sem ler num livro,
Já tem em decoração
Todo ano, mês de junho
Temos por obrigação
De cantar toada nova
Em louvor a São João
Viva a estrela do dia
Cobrindo a noção nação.
(Coxinho do Bumba-meu-boi de Pindaré)
Com o fim do auto dramático, iniciam-se as cantorias das toadas de respostas, também chamadas toadas de pique. São embates entre cantadores, com toadas improvisadas. Depois da peleja, o cantador puxa a toada de Despedida, que é o adeus do Bumba-meu-boi, e ainda pode-se cantar a Toada de Retirada.
Toada de Despedida
1. Adeus, garota querida
Chegou a hora da nossa separação
Você sabe que eu tenho compromisso
E, além disso, trabalho
Pra São João
Sei que vai sentir saudades de mim amanhã
Tu és joia preciosa
Te deixo uma rosa dos jardins do Maracanã.
(Humberto do Maracanã)
2. Digo: “adeus morena “
Eu vou cantar noutro terreiro
Meu São João me chamou
Eu vou levar meu galheiro
(Zé Olhinho- Bumba-meu-boi de Santa Fé)
COMPLEMENTE TUDO ISSO COM: Farofa Literária - EP02 - BMBA MEU BOI do Maranhão
As festas profano-religiosas. EP01: A CONGADA
Guilherme Trucco é escritor paratiano, sua obra é inteiramente dedicada a explorar a cultura popular da brasilidade, e seus desdobramentos profundos, através de uma literatura ficcional voltada para o Realismo de Encantaria, uma mistura à brasileira de realismo mágico, realismo animista e o surrealismo. É autor dos livros de ficção: Saída Bangu, Vocês vão ter que me engolir, e Nó na Garganta, além de ser colunista no portal Ludopédio.
Seu Blog: https://www.guilhermetrucco.com e seu Instagram: @gui_trucco
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* Conceição Trucom (Instagram: @conceicaotrucom) é química, pesquisadora, palestrante e escritora sobre temas voltados para alimentação natural, bem-estar e qualidade de vida. Possui 10 livros publicados, entre eles O Poder de Cura do Limão (Editora Planeta), com meio milhão de cópias vendidas, Mente e Cérebro Poderosos (Pensamento-Cultrix) e Alimentação Desintoxicante (Editora Planeta).
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