Cavalo Marinho: magia, saberes e oralidade

Guilherme Trucco *

Esta é a festa popular do Episódio 04 da série Farofa Literária. A brincadeira do Cavalo Marinho, é um folguedo, ou mesmo uma brincadeira brasileira, tradicional da região da zona da mata de Pernambuco, e de algumas regiões da Paraíba. Talvez uma das brincadeiras mais ricas em termos de teatralidade, pois ela possui nada mais, nada menos, do que 76 figuras, que compõem toda a sua dramatização dançada, e, quando completa, chega a ter 8 horas de duração, levando toda a madrugada para ser encenada, dançada e brincada.

Em breve nosso vídeo do EP04 estará no AR. Enquanto isso vamos saber mais?

Por ter tantas figuras, as brincadeiras de Cavalo Marinho iniciam-se no mês de junho, com os preparativos e confecções das indumentárias, preparados com muita criatividade pelo seu povo brincante, sempre liderados por seu mestre, que comanda os preparativos, além de passar adiante para as novas gerações seu conhecimento sobre o folguedo.

Entretanto, o ponto alto do Cavalo Marinho é a época de Dia de Reis, comemorado no dia 6 de janeiro. É neste momento que o Cavalo Marinho é encenado de maneira completa.


Os escravos Mateus e Bastião são os abre-alas

Histórico

Por ser tradicional da zona da mata de Pernambuco, o contexto do Cavalo Marinho está muito ligado aos engenhos de açúcar, e todos os tipos sociais que envolviam estes engenhos, desde os escravos, até a aristocracia que compunha as casas de engenho. O nome Cavalo Marinho em si já tem um toque de “mágico”, ele designa o capitão ou coronel, dono do engenho, que veio de Portugal, do além mar, e só anda a cavalo, e daí seu nome. Ele é um dos personagens centrais da encenação da brincadeira.

Outros 2 personagens centrais são o Mateus e o Bastião, dois escravos que são ordenados pelo senhor Cavalo Marinho a tomar conta do terreiro enquanto ele não está, e que, em certo momento, resolvem tomar o terreiro para si, se revoltando contra seu senhor.

Este é o ponto nevrálgico da trama, e de seu contexto histórico

A brincadeira de Cavalo Marinho é, por essência, uma festa popular, feita pelo povo e para o povo, de conhecimento oral e de dança. Em muitos momentos da trama, as diversas figuras do enredo lidam com o senhor dono de engenho de maneira a enganá-lo, seja através da cantoria, da inteligência, da malandragem, da dança ou da magia. Ora, estas são as estratégias do povo para vencer um adversário de maior poder.

Ariano Suassuna aponta este tipo de personagem, tão comum em diversas manifestações culturais do Nordeste, como o herói nordestino, aquele que não é o mais forte, nem o mais rico, mas que de um jeito ou de outro acaba encontrando suas próprias soluções inventivas para vencer a situação. Tudo isso com seu traço característico: muito humor, brincadeira, magia, fé e dança.

Mateus e Bastião usam um chapéu de cone, e por sobre o chapéu cabeleiras coloridas. Além disso, levam sempre à mão suas bexigas de boi, que batem a todo momento, sendo cômicas, e rítmicas ao mesmo tempo. Trata-se de uma fantasia em muitos aspectos parecida com a indumentária do Caboclo de Lança, também uma figura mágica e brincante do Maracatu do Baque Solto, ou Maracatu Rural, outra brincadeira também tradicional da zona da mata pernambucana. Seja os escravos Mateus e Bastião, seja o Caboclo de Lança com sua lança rezada e encantada, são imagens que subvertem o poder com magia e encantamento. 

Personagens

O Cavalo Marinho possui 76 imagens, desde os instrumentistas que compõem o banco, e levam as toadas, até as imagens fantasiadas que compõem o enredo. Eles podem ser divididos em três grupos principais:

- Personagens humanos: Capitão Cavalo Marinho, Mateus, Bastião, Catirina, Galantes e Damas, Mestre Ambrósio, Soldado da Guarita, Mané do Baile, Doutor da Medicina, Valentão, Empata Samba, Pisa Pilão Barre Rua, Matuto da Goma, Véia do Bambu, Véio Cacunda, Margarida, Pataqueiro, Verdureiro, Roseira, entre outros;

- Personagens fantásticos:  Caboclo de Urubá, Parece mas não é, Morte, Diabo, Babau, Jaraguá; e

- Os animais: Boi, Ema, Cavalo, Macaco, Onça e Burra. 

Trama

Basicamente o enredo encenado é o seguinte: O Capitão Marinho deseja organizar uma festa para comemorar o Dia de Reis, e convida os Galantes e Damas da aristocracia ao seu engenho para o dia da festa. Entra em cena o Mestre Ambrósio, um vendedor e comerciante que se propõe a vender as máscaras e fantasias das figuras necessárias para a festa. Mestre Ambrósio vai interpretando pela cantoria e pela mímica corporal cada um dos personagens que ele negocia a fantasia com o capitão. Chegam então Mateus e Bastião, mandados pelo capitão para tomar conta do terreiro onde irá acontecer a festa. Os dois, entretanto, se rebelam, e de maneiras cômicas vão enganando e se revoltando contra o Cavalo Marinho, tomando o terreiro para si. A partir de então, vão entrando todos os demais personagens, como o Empata Samba, arquétipo do valentão que chega para acabar com a brincadeira, ou o Soldado da Guarita que o Cavalo Marinho chama para tentar tomar o terreiro de volta.

No momento que chegam os Galantes e Damas, ocorre a bonita Dança de São Gonçalo, ou dança dos arcos, (outro folguedo típico nordestino por si só, São Gonçalo era conhecido por organizar danças para tirar mulheres das ruas, nas quais ele próprio dançava de saias).

Muitos animais encantados aparecem, até que finalmente chega o boi (símbolo de fartura), que Mateus e Bastião matam, para distribuir a carne para todos na festa. O capitão, ao ver o boi morto, manda chamar o Doutor da Medicina que examina o boi, e diz que não há salvação possível. Chega então o Caboclo Juremeiro, ou de Urubá, que ressuscita o boi encantado. A partir de então começam as toadas de despedida, e não raro, são formadas também rodas de coco (link para o episódio de coco). 

Mestres e Grupos

A família Teles, na cidade de Condado no Pernambuco tem uma tradição de três gerações a frente das brincadeiras de Cavalo Marinho, ainda hoje liderados por Nice Teles, ou Mestra Nice do Cavalo Marinho, que leva o Cavalo Marinho Estrela Brilhante, e o Cavalo Marinho Estrelas do Amanhã, com importante trabalho educacional na região.

Além dela, muitos outros mestres tem importante legado, como:

Cavalo Marinho do Mestre Zé de Bibi, Mestre Zé de Bibi (Glória do Goitá - PE), onde se encontra o primeiro e único museu do Cavalo Marinho do Brasil; 

Cavalo Marinho Estrela de Ouro, Mestre Biu Alexandre (Condado – PE); 

Cavalo Marinho Boi Pintado, Mestre Grimário (Aliança - PE); 

Cavalo Marinho Mestre Batista, Mestre Mariano Teles (Aliança - PE); 

Cavalo Marinho Estrela do Oriente, Mestre Inácio Lucindo (Camutanga - PE); 

Cavalo Marinho Boi Maneiro, Mestre Pedro Luiz (Itambé - PE); 

Cavalo Marinho Boi Brasileiro, Mestre Biu Roque (Itaquitinga - PE); 

Cavalo Marinho Boi de Ouro, Mestre João Araújo (Pedras de Fogo - PB); 

Cavalo Marinho Boi Matuto, Família Salustiano (Olinda - PE), 

Cavalo Marinho Infantil Sementes do Mestre João do Boi, Mestra Tina (João Pessoa - PB); 

Cavalo Marinho do Mestre João Aivira (Pedras de Fogo - PB). Estrela da Paraíba Mestre Nélio Torres - (Comunidade de Bayeux Paraíba).

 

Referências bibliográfica:

https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/tede/6618/1/arquivototal.pdf

https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/692/1/arquivo4640_1.pdf

(*) Guilherme Trucco é escritor paratiano, sua obra é inteiramente dedicada a explorar a cultura popular da brasilidade, e seus desdobramentos profundos, através de uma literatura ficcional voltada para o Realismo de Encantaria, uma mistura à brasileira de realismo mágico, realismo animista e o surrealismo. É autor dos livros de ficção: Saída Bangu, Vocês vão ter que me engolir, e Nó na Garganta, além de ser colunista no portal Ludopédio.
Seu Blog: https://www.guilhermetrucco.com e seu Instagram: @gui_trucco

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