Guilherme Trucco *
Esta é a festa popular do Episódio 05 da série Farofa Literária.
Em muitas partes São Benedito, juntamente com Nossa Sra. Do Rosário, é cortejado e louvado nos folguedos e brincadeiras comemorativas, desde a Congada em Minas Gerais, à diversos reisados pelo país a dentro. Não é diferente com a Marujada. Entretanto, segundo Mário de Andrade, em seus ensaios sobre as Danças Dramáticas do Brasil, o que melhor “define” a temática das Cheganças de Marujada, bem como sua irmã gêmea, as Cheganças de Mouros, é a característica de “colcha-de-retalhos, sem uma ideia central dominante, organizadora”. Trata-se, portanto, de um folguedo que transmite o que de melhor tem a cultura popular brasileira: a mistura, a bagunça, a brincadeira, a alegria.
De fato, em cada região que for encontrada uma Marujada, terá uma tradição diferente, um contexto diferente, uma ritualística, musicalidade, indumentárias e cortejos trazidos através de gerações pelo Mestre ou Mestra brincante da região. A única coisa que une as Marujadas como partes de um mesmo folguedo, além de São Benedito, é o tema marítimo, sendo este composto de verdadeiras colagens, retalhos de pedaços de antigas histórias marítimas portuguesas. No caso das Cheganças de Mouros, estas histórias ainda possuem mais um fator, que é a guerra santa contra os Mouros, no contexto da expulsão destes da península Ibérica, na época das cruzadas.
Mas como esse tipo de história veio parar no Brasil popular, e ainda por cima, entoado justamente por escravos e seus descendentes? Este é o ponto nevrálgico da beleza da festa. Não é novidade que as companhias jesuítas que vieram no período colonial se empenharam em catequizar escravos, índios e africanos, com a argumentação de que apenas convertidos passariam a ter alma. Esse processo, para além da violência contra os corpos dos escravos, era uma violência que buscava apagar todo o sistema de saberes e culturas destes povos.
A saída encontrada pelos ameríndios e escravos africanos foi a adequação transgressora, um processo de adaptação cultural que ao mesmo tempo que se adequava, assimilando a estrutura normativa do branco ocidental, transgredia, introduzindo sua própria cultura neste processo. Assim, ao mesmo tempo que os escravos foram autorizados a criar irmandades religiosas para louvarem São Benedito, o santo negro, eles transformavam procissões (do latim procedere, marchar) em cortejos (do italiano corteggio, tratar com cortesia, gentileza).
Procissão e cortejo parecem ser a mesma coisa, mas são bem diferentes.
Na procissão, há rigidez e seriedade.
No cortejo, existe o profano da dança, do riso, do corpo.
Os saberes sagrados da ancestralidade africana, bem como da ameríndia, estão totalmente conectados ao corpo, que está conectado ao território. E é justamente o corpo que é violentado no processo de escravidão, e também no processo de catequização: Para o cristão ortodoxo, o corpo faz parte do pecado, enquanto para os saberes africanos e ameríndios o corpo faz parte do sagrado. Festa e obrigação não são coisas tão diferentes assim.
No processo de catequização, padres como José de Anchieta, foram hábeis em criar peças dramáticas (Auto da Festa de São Lourenço, por ex.), que funcionavam como forma de introduzir a cultura ocidental, as histórias heroicas das cruzadas, das viagens marítimas, como maneira de substituir e apagar os saberes sagrados dos índios e africanos.
É deste processo, destas histórias contadas e recontadas, misturadas e res-significadas, que surgem as Marujadas. As Cheganças de Marujos, ou de Mouros, são dançadas através do corpo, dos cortejos à São Benedito, e dramatizadas na colcha-de-retalhos de episódios históricos que possuem dois aspectos místicos em comum:
1) As cruzadas nada mais eram do que a batalha daquele que tem fé, que confia no sagrado, contra o infiel. Quando retiradas do contexto estritamente Cristãos versus Mouros, quando misturadas, colocadas em ordem mais ou menos diversa, a essência continua essa: a busca do sagrado;
2) Existe também o aspecto místico do mar, das navegações, e é desse tema que surgem histórias como a da Nau Catarineta (encenado em Marujadas diversas), onde um navio fica à deriva por anos, até ser salvo por um milagre.
Voltando a São Benedito, este era um filho de escravos refugiados da Etiópia, porém nascido na Itália, já teoricamente livre. Entre seus milagres, ressuscitou um bebê branco (daí sua representação em imagens típicas carregando o menino jesus branco no colo), e muitos milagres ligados à multiplicação de peixes e comida em geral para os pobres (era delegado como cozinheiro da igreja). Era um santo negro, africano, descendente de escravos, e por isso foi rapidamente adotado como padroeiro dos pretos, escravos e povos da diáspora africana no Brasil.
Entretanto o milagre talvez mais significativo de São Benedito seja este: Benedito havia escondido comida nas mangas de sua bata, para levar aos pobres e necessitados fora da igreja. O comando da igreja havia proibido Benedito de fazer estas ações para os necessitados infiéis, mas Benedito continuou a fazer, mesmo que escondido. Ao ser indagado por um cardeal o que levava escondido nas mangas, Benedito respondeu que eram apenas rosas, e por milagre, ao mostrar as mangas, realmente dela saíram rosas.
Este milagre é especial pois contém a narrativa do sagrado, independente das hierarquias e leis humanas. Benedito contrariou as ordens da igreja, mas como estava correto em sua atitude, ainda assim o sagrado estava ao seu lado para praticar o milagre. Esta imagem, para o escravo que desejava manter sua fé intacta, mesmo se adequando ao senhor Colono, foi extremamente potente.
Foi portanto, através de São Benedito, que o africano e o índio puderam manter o corpo como brinquedo sagrado, como profano dançador capaz de transmitir e incorporar a energia ancestral da terra, da sua visão de mundo. Não à toa Mario de Andrade se aprofundou às Marujadas de São Benedito pois “preservam a força trágica, de uma grandeza humana e de uma beleza artística fundamentais”.
Ligação com a Encantaria e o Tambor de Mina
Para a Encantaria, existe um conceito ancestral ligado ao Rei de Portugal Dom Sebastião. Sua história heroica, ao desaparecer ainda jovem em uma cruzada além-mar contra os Mouros, na famosa batalha no deserto de Alcácer-Quibir, no Marrocos. A questão é que seu corpo nunca foi encontrado, portanto, Dom Sebastião nunca morreu. Para a Encantaria, Dom Sebastião, juntamente com sua corte real que o acompanhava em campo, e mesmo com Mouros e Turcos reais, vieram parar nas desérticas dunas do Maranhão, através do encantado. É mesmo Dom Sebastião quem se encanta no boi, quando estamos falando do folguedo do Bumba-meu-boi. As casas de Tambor de Mina, religião de matriz africana advinda da região da Costa da Mina, também compreenderam este saber sagrado da Encantaria, e seus praticantes incorporam toda uma dinastia de reis e rainhas, portugueses e mouros, em seus trabalhos.
Assim como existem os Orixás no candomblé, de origem iorubá jejê-nagô, no Tambor de Mina existem os Voduns, sendo um dos mais importantes conhecido como Tóia Averekete. Este Vodum habita no encontro do mar com a terra, na arrebentação das ondas, no barulho imponente que as forças do mar emitem, no encontro do encantado entre terra, mar e céus. Averekete é sincretizado com São Benedito, não apenas pelo fato de Benedito ser um santo negro, que serviu de apropriação para o sagrado de matriz africana, mas também por ser o padroeiro da fartura, do milagre da alimentação, enquanto Averekete é a entidade que também ajuda a fartura dos pescadores.
Não por acaso, as roupas tradicionais dos marujos e marujas em seus cortejos e danças, manifestam o azul, branco e vermelho, as cores de Tóia Averekete.
A Marujada de Bragança/PA
Talvez a Marujada mais conhecida nos tempos atuais. De março a dezembro, uma comitiva peregrina por todo o município de Bragança, abençoando seus devotos, voltando, em dezembro, para a Marujada propriamente dita, composta de procissão com a imagem de São Benedito pela cidade, missa e danças pela noite adentro até a alvorada. Atualmente não há, na Marujada de Bragança, nenhuma encenação dramática quanto aos romances marítimos, ou cruzadas, entretanto, as vestimentas e as danças permanecem tradicionais, mantidas por Mestras que comandam o folguedo.
Ainda resistem muitas outras, entretanto, sendo menos ou mais populares, com suas diferenças entre tradições, cortejos, e saberes sagrados, como as Marujadas de Laranjeiras/SE, Penedo/AL, Curaçá/BA e Ananindeua/PA, entre tantas outras.
Toadas e Loas
A título de exemplo, segue um trecho de toada coletada por Mário de Andrade (mantendo a oralidade do canto), de uma Marujada em Natal/RN, na qual os marinheiros lidam com os mistérios e o sagrado do mar:
A orora quando nasce
Nu centro do má lá fora
É tão linda, é tão bela
Cumus anjin lá na glória
Minha mãe bem mi dizia
Que eu num fosse embarcá
Este anau si perderia
Eu me lançaria ao má
Eu venho du má, eu venho
Lá da ilha do Leão
Venho corrido da calma,
Imbusca da viração
Sinho pade capelão
Mi bote a sua benção
Que eu vô mi lançá ô má
Di todo meu coração!
Marinhêro qui vai ô leme
Pode orçá, pode arribá
Já safemos do perigo
Já pudemos navegá
Agradecimento: ao camarada Max d´Castro, artista e brincante de Belém do Pará que me ajudou bastante na compreensão das Marujadas!
(*) Guilherme Trucco é escritor paratiano, sua obra é inteiramente dedicada a explorar a cultura popular da brasilidade, e seus desdobramentos profundos, através de uma literatura ficcional voltada para o Realismo de Encantaria, uma mistura à brasileira de realismo mágico, realismo animista e o surrealismo. É autor dos livros de ficção: Saída Bangu, Vocês vão ter que me engolir, e Nó na Garganta, além de ser colunista no portal Ludopédio.
Seu Blog: https://www.guilhermetrucco.com e seu Instagram: @gui_trucco
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* Conceição Trucom (Instagram: @conceicaotrucom) é química, pesquisadora, palestrante e escritora sobre temas voltados para alimentação natural, bem-estar e qualidade de vida. Possui 10 livros publicados, entre eles O Poder de Cura do Limão (Editora Planeta), com meio milhão de cópias vendidas, Mente e Cérebro Poderosos (Pensamento-Cultrix) e Alimentação Desintoxicante (Editora Planeta).
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