Consumo Consciente
O equilíbrio da mata
Ana Maria Primavesi *
Revista Guia Rural Abril. ANO 4, N. 5, 1990
Os incentivos fiscais que até recentemente eram despejados na Amazônia financiaram uma descontrolada ocupação da mata. Empresas estrangeiras abocanharam enormes glebas pelo preço do papel da escritura. O governo fez estradas, sonhando com o progresso. O Incra assentou colonos ao longo das estradas. Chegaram pequenos agricultores do Sul, que, pelo preço da venda de suas terrinhas, compraram enormes fazendas.
Compraram ou tomaram a mata dos índios, seringalistas, castanheiros, caboclos e posseiros. Aí a briga ficou feia. Primeiro, os seringalistas mataram os índios, alegando que a terra era deles. Os fazendeiros expulsaram os seringalistas, e a Eletronorte, os castanheiros. Os garimpeiros, além de poluir os rios com mercúrio, mataram todos que se punham em seu caminho.
Veio o governo e implantou o Projeto Carajás, que precisava de carvão. Chegaram os carvoeiros e queimaram as árvores. Mognos e sucupiras viraram carvão. Os madeireiros tentaram salvar alguma coisa para eles. Derrubaram e queimaram a mata somente para aproveitar uns 30 a 35 metros cúbicos da preciosa madeira em cada hectare desmatado.
Aí, arrasaram a mata para implantar pastagens. Esta era a vocação da Amazônia: ser o "pote de carne" do mundo. Afinal, não dava para entender por que ainda não havia ocorrido a ninguém a ideia salvadora de usar aquela enorme extensão de terra para a agropecuária. São 5 milhões de quilômetros quadrados que compõem a chamada Amazônia Legal, dos quais 3,4 milhões de quilômetros quadrados ocupados pela mata pluvial do trópico úmido. A temperatura não era muito alta, as chuvas eram abundantes e uma terra que sustentava mata tão exuberante tinha de ser boa. O que precisava era somente motosserras, fósforos e brio!
A mata caiu, mas a terra boa não apareceu. Só de vez em quando havia um trechinho de terra fértil. O resto era pobre, muito pobre. Mas como a mata vivia? Simplesmente reciclando nutrientes. Absorvendo-os do solo, formando folhas, jogando folhas, decompondo folhas e absorvendo novamente. Um círculo contínuo. Para os "espertinhos", a conclusão era óbvia: com tanta chuva e calor, mesmo em terra pobre tudo prolifera. Mas quando a mata desapareceu a chuva minguou. Não era a mata que existia por causa da chuva. Mas sim a chuva abundante - até 4 mil milímetros/ano - que existia por causa da mata. As árvores absorviam a água e transpiravam, saturando o ar com vapor. Formavam-se nuvens e chovia novamente. Cerca de 75% da chuva era reciclagem local. E a terra, protegida pela mata e as folhas, deixava penetrar a água que abastecia os rios e igarapés.
A água evaporada pelas folhas refrigerava o ar. Cada colher de água evaporada retira 5 quilocalorias do ar. Por isso, a temperatura sempre ficava em torno de 260C, nunca fria nem quente demais. Quem mantinha a temperatura era a mata: um gigantesco termostato. E as nuvens produzidas impediam a entrada livre da luz solar, de modo que menos da metade dos raios atingia as árvores. Sem mata, não havia mais tantas nuvens, nem "termostato", nem chuvas freqüentes. Entrava somente um vento persistente que levava embora a já escassa umidade. Os rios passaram a ficar sem água quando não chovia, mas inundavam quando a água caia. E as represas gigantescas como Tucuruí - que ocuparam o lugar da mata - soltaram sua água apodrecida, acabando com os peixes do rio Tocantins.
Mesmo assim, as pastagens chegaram. Plantou-se capim colonião, mas na maioria das terras deu ''doença-dos-sinos", ou carvão nas sementes. E o colonião sumiu. Plantou-se braquiaria, mas as cigarrinhas acabaram com ela. Também foram as cigarrinhas que devastaram a humidicola, o quicuio-da-Amazônia. Plantou-se brizantão, mas este cobria pouco a terra, e as palmeiras de babuçu tomaram conta.
Mas se a vocação da Amazônia não é pastagem, então é soja! Claro! Terra pobre tem de ser adubada e aí dá supersafras. Porém, terra arada só podia dar erosão. Será que a experiência com as pastagens não mostrou que monocultura não dá? Até plantações de culturas regionais - como caju, cacau e seringueira - ficaram cheias de pragas e doenças.
Ou seja: a busca frenética por terras férteis está apenas devastando a mata da Amazônia. No total, já foram queimados 40,8 milhões de hectares, ou 12% das matas. Somente em Rondônia, a área devastada atinge 22% do estado.
É possível usar a Amazônia respeitando equilíbrio solo/mata/clima. Os segredos são: sombra e muita matéria orgânica; cultivos perenes de árvores e arbustos em policultura; sistemas silvo-agropastoris somente nas terras férteis (com 10% de matéria orgânica no solo).
Se a natureza for respeitada, a Amazônia pode virar o paraíso. Ou vai virar um deserto, se for tratada arbitrariamente. Escolham.
Bem curioso que este texto foi escrito por ela em 1990 e quão atual ele é... Visionária Ana!
(*) Ana Maria Primavesi é agrônoma, produtora rural e autora de vários livros sobre a biologia do solo.
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