Mundo ECO
A problemática da água: ser otimista é possível?
Revista Permacultura Latina entrevista Claudia Piccazio
Diante das preocupantes previsões da ONU de que cerca de quatro bilhões de pessoas serão vítimas da escassez de água em todo o mundo a partir de 2050, o livro Água, Urgente! Nosso futuro pode morrer de sede - Editora Terceiro Nome - faz uma análise das variantes que compõem o problema e mostra quais são as iniciativas para encarar o fato de frente.
A autora, Claudia Piccazio, é jornalista e assessora de comunicação da Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos. Nesta entrevista à Permacultura Latina, ela dá valiosos exemplos de gerência e preservação dos recursos hídricos, além de apontar onde o mundo está falhando.
Permacultura Latina - Os riscos ambientais sempre parecem medidos a longo prazo. A questão da água, como diz o título do livro, é urgente. É preciso muito otimismo para achar que o problema ainda tem solução?
Claudia Piccazio - O sentido de urgência foi acionado, entre outras questões, pelas previsões da ONU de que cerca de 4 bilhões de pessoas serão vítimas da escassez de água em todo o mundo a partir de 2050. As previsões são reforçadas pelo relatório do Programa de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, publicado no final de 2006, cujo título é “Além da Escassez: Poder, Pobreza e a Crise Mundial no Fornecimento de Água”, que recomenda ao mundo um plano de ação imediata.
As soluções para as questões hídricas não devem ser estabelecidas apenas com a aplicação de tecnologia para captação, armazenamento e preservação da água e de seus mananciais. É um problema, segundo a ex-secretária de meio ambiente da cidade de São Paulo, Stela Goldenstein, “que exige práticas vinculadas ideologicamente, de compromissos sociais, de processos sociais politicamente inclusivos”.
No capítulo Nordeste, Israel e África, as três regiões são comparadas. Por que Israel em condições climáticas ainda mais críticas que as do Nordeste deu certo e tornou-se uma referência em gestão de recursos hídricos e, o Nordeste brasileiro assim como a África não, até agora?
O economista angolano José Gonçalves, por exemplo, considerou a situação africana ainda pior do que a do Nordeste e estabeleceu como causa da crise a fragilidade dos governos africanos e por conseqüência a dificuldade em financiar projetos, “nenhum outro país se habilita a investir em países política e economicamente instáveis. A elite africana está preocupada em resolver problemas macros e a água está em segundo plano.”
Em relação ao Nordeste, a carência de água se dá principalmente por questões econômicas, segundo a obra de Aldo Rebouças, profundo conhecedor da região. Ele atribui como causa da escassez os extremos níveis de pobreza da população. Em seu livro Uso Inteligente da Água, o geólogo utiliza um exemplo que resume bem a sua opinião a respeito: se habitantes do bairro dos Jardins, de São Paulo, se mudassem para Guariba, no Piauí, rapidamente haveria água encanada, coleta de esgoto e lixo porque não faltaria grupo econômico interessado em investir já que a população, nesse caso, poderia pagar.
Quanto ao Nordeste há ainda a questão polêmica sobre a transposição do Rio São Francisco. São 12 milhões de pessoas que precisam dessa água e, segundo estudos, não há a possibilidade da região tornar-se auto-suficiente. Chove pouco e o lençol freático não é alimentado – são 50 litros de água por pessoa que mal dão para tomar banho e fazer a comida. Ao mesmo tempo, alguns especialistas consideram que não há estudos sobre a viabilidade técnica e não se sabe se o rio é capaz de suportar.
As obras do atual projeto de transposição pretendem concentrar-se em grandes empresas agrícolas para que elas, por sua vez, abram espaço para os pequenos agricultores. Exatamente porque este projeto ignora os pequenos agricultores é que o bispo Dom Luiz Flávio Cappio, da diocese de Barra, Bahia, fez greve de fome em 2005.
Em relação às soluções para as questões hídricas, é possível ser otimista quando tomamos conhecimento, por exemplo, que o Chile conseguiu 100% de acesso à cobertura de água potável e ao saneamento em áreas urbanas. Foi preciso apenas estabelecer o projeto como meta política. Gosto muito de emendar esse a outro feliz exemplo: um lago, no Japão, foi despoluído a partir de um trabalho realizado por crianças da escola primária que convenceram suas mães a usarem detergentes biodegradáveis.
Permacultura Latina - Além de regiões críticas, como o Nordeste, como está a gerência dos recursos hídricos no Brasil?
Claudia Piccazio - Parte do desperdício hídrico apresentado no livro refere-se à água que nem chega às torneiras porque os canos enferrujados e velhos não permitem. No Brasil, esse desperdício é de 47% quando o considerado aceitável é de 20%. Há hoje, por parte dos países, preocupação com o gasto exagerado da água na agricultura e na indústria. Dos 70% de água consumida pela agricultura, calcula-se que metade é desperdiçada no processo de irrigação. O consumo altíssimo de água nos processos industriais está sendo combatido por leis mais rígidas. Os Estados Unidos conseguiram, por exemplo, reduzir um terço do consumo de água nessa área, ao mesmo tempo em que duplicaram a produção industrial.
O economista José Gonçalves afirma que protestar é uma das atitudes importantes no processo de gerenciamento da água e lembra que o Rio Grande do Sul e o Paraná conquistaram boas condições nesse sentido porque houve muito protesto “os primeiros comitês de bacias foram formados lá. As grandes noções de gestão da água vieram do Paraná e de São Paulo”.
Stela Goldenstein aponta lugares onde são visíveis os avanços no sentido de adaptação de processos mais articulados como o litoral norte, em São Paulo. A secretaria de comitê de bacias é ágil e com boa capacidade de mobilização e conseguiu chamar a atenção do conjunto da sociedade para o problema da água. O rio Piracicaba é outro exemplo, onde um consórcio de prefeitos participa ativamente do comitê de bacias.
Resolver a questão é totalmente possível. A solução não é complicada, mas é trabalhosa porque exige da sociedade, e do poder público, dedicação integral. Para Stela Goldenstein, não basta votar, é preciso uma democracia participativa com conselhos e fóruns sociais de negociação entre o poder público e a sociedade, para que as ações tenham legitimidade. É preciso desenvolver capacidade de organização da sociedade.
Permacultura Latina - Pensar sustentabilidade na gerência da água demanda compromissos sociais, econômicos e políticos. Frente à possibilidade de escassez de água, como unir estas frentes?
Claudia Piccazio - O Planeta tem muita água, mesmo a considerada própria para consumo. São 135 mil quilômetros cúbicos na superfície e 10,5 milhões subterrâneos. A possibilidade de escassez se apresenta, em grande parte, pelo fato dessa água ser (e estar) contaminada, muito mais até do que pelo seu desaparecimento. Considerando que um só metro cúbico de água contaminada inutiliza outros dez. O livro mostra que a água imprópria tornou-se uma ameaça muito maior para a segurança humana do que os conflitos violentos que assolam o Planeta. Metade dos leitos de hospitais em todo o mundo é ocupado por portadores de doenças transmitidas por água contaminada, e 80% das consultas médicas da rede pública estão relacionadas direta ou indiretamente à água. São 205 mortes por hora, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).
A OMS calculou que, num período de 10 anos, a cada mil reais que investirmos em saneamento, esgoto e água potável serão economizados quatro mil na área de saúde pública. E o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2006 reforçou os cálculos dizendo que, a cada dólar investido em metas de água e planejamento, há o ganho de oito dólares em tempo, acréscimo de produtividade e custos de saúde.
Penso que os meios de comunicação devem assumir uma fatia de responsabilidade na divulgação de informações, que necessitam ir muito além de como economizar água dentro de casa. A questão hídrica nos sinaliza, ferozmente, que todos estamos no mesmo barco e todos, como seres humanos, temos as mesmas necessidades, quaisquer que sejam as condições em que nos encontramos. Já pensou não ter água alguma na redação do jornal, nem um copo? Ou, o que é pior, ter apenas água contaminada?
Referências:
"Repórter Especial" é uma coleção escrita apenas por jornalistas e dedicada a quem procura informações essenciais sobre os mais diversos aspectos do mundo em que vivemos. Conheça: Água, Urgente! Nosso futuro pode morrer de sede - Claudia Piccazio - Editora Terceiro Nome
Site Instituto de Permacultura e Ecovilas do Cerrado
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