Farofa Literária
Os três reis magos, e o encantado oral na Folia de Reis
Guilherme Trucco *
A Folia de Reis, como procissão e cortejo aos três reis magos, remonta ao Egito Antigo, chamada de Festa do Sol Invencível, e posteriormente migrando na idade média para a Europa. Foi versada em Portugal através de Gil Vicente, e chega ao Brasil pelas mãos de José de Anchieta e Manoel da Nóbrega, com cantigas e folias estruturadas para catequizar índios.
Talvez a folia mais disseminada em todo o território brasileiro, é uma brincadeira que surge no contexto “caipira” como entende Darcy Ribeiro, em pequenas cidades rurais, onde todas as famílias se conhecem, e muitas vezes as casas ficam a quilômetros de distância umas das outras.
Com o êxodo rural, a Folia de Reis também atinge os grandes centros urbanos, através das igrejas.
De cunho majoritariamente católico popular, a folia é centrada na jornada dos três reis magos que levaram presentes ao nascimento do menino Jesus. Assim, procissões são montadas por festeiros a fim de passar por todas as casas de uma comunidade, iniciando no dia 24 de dezembro (Missa do Galo), então todos os dias levando cantoria, e pedindo dinheiro para a festa do Dia de Reis, que acontecerá no dia 6 de Janeiro.
Mas, como toda folia que se entranha no popular da brasilidade, a Folia de Reis não se enquadra apenas como uma procissão religiosa, adquirindo, através das décadas, ressignificações múltiplas. Mário de Andrade identificou na Folia de Reis a base para que muitas outras folias se desenvolvessem, como a coroação do Rei e Rainha Congo, nas Congadas, ou os muitos “reisados” que se desenvolveram com a adição da encenação brasileiríssima do encantamento do boi, tendo aí portanto ramificações no Cavalo Marinho, e no Boi Bumbá, para ficar nos mais conhecidos.
Esse desmembramento e ressignificação é possível muito por conta das figuras centrais da Folia de Reis: Os três Reis Magos.
Examinando com mais cuidado, percebemos que os três reis são constituídos de etnias diferentes, sendo Belchior europeu, Gaspar provindo das índias, e Baltazar africano. Eles não são apenas reis, são também magos, e aí reside muito de seu mistério e encantamento. Ao levarem seus presentes ao menino Jesus, transportam e presenteiam também seu encantamento, seu sagrado em estado simbólico, com a Mirra levada por Baltazar, uma planta da qual se extrai um óleo curativo e transformativo, com o incenso levado por Gaspar, que defuma energias, e com o ouro, símbolo máximo dos alquimistas capazes de transmutar todo o físico em ouro.
Ainda, seguindo a estrela guia, os três reis magos do oriente são capazes de desenvolver estratégias em sua jornada para enganar Heródes, que perseguia Jesus para matá-lo. Nas representações tradicionais brasileiras das Folias de Reis, o caminho percorrido pela comitiva do cortejo deve se preocupar em traçar uma rota sempre do leste(oriente) para oeste(ocidente), sem cruzar os caminhos (não passar pelo mesmo local duas vezes), e voltando por caminhos diferentes - estratégias para enganar Heródes - Entre giro e pouso, sempre terminando em um local onde poderão pernoitar para continuar no dia seguinte, embora atualmente as comitivas sejam feitas de carro na maioria dos locais, podendo voltar dormir em casa todas as noites.
Entretanto, talvez até mais interessantes do que os Reis Magos, existem duas figuras ainda mais brasileiras na folia de reis, trata-se dos dois palhaços, que ladeiam o cortejo. Conta-se que os palhaços são dois soldados de Heródes, que, ao encontrar o menino Jesus, são tocados pelo sagrado, e ao invés de matá-lo, decidem vestir máscaras, e protegê-lo, enganando os demais soldados que estão a caminho. É nos palhaços que sagrado e profano se misturam, onde o corpo, a gargalhada, e o sagrado se manifestam de uma só vez. Em muitos locais, os palhaços são chamados de Bastião, como são também denominados os escravos brincantes da folia de Cavalo Marinho, sempre acompanhados de Mateu e Catirina.
Cantorias
De forma mais estruturada, podemos buscar a literatura oral das cantorias com as seguintes fases:
Cantorias de saída (beijo da bandeira)
Ainda na praça central da cidade, ou igreja, reza-se o terço (muitas começam após a missa do galo). A bandeira possui grande sacralidade, geralmente trazendo uma imagem dos Três Reis Magos, e não raro o nome dos ternos que compõem os foliões. Muitas vezes, conforme a bandeira vai passando de casa em casa, vão sendo remendados a ela rezas ou ex-votos, como fotos, bilhetes e fitas coloridas.
Cantorias de Chegada/Saudação
Entrega-se a bandeira para o dono da casa onde estão chegando. Na frente da casa deve haver um arco de bambus e flores. O dono passa pelo arco de bambu primeiro, e depois os integrantes da folia.
Cantorias de Pedido de esmola
Pedidos de doação para a festa de Santos Reis que acontecerá na cidade no dia 6 de Janeiro.
Adoração do presépio
São “lapinhas” e versos cantados geralmente pelos palhaços, ladainhas que contam a trajetória dos três reis magos, e a sagrada família.
Dança de catira/ciranda
Não raro, em algumas casas, pode-se entrar noite adentro após a chegada dos foliões, com a dança da Catira ou Ciranda.
Cantoria de despedida
Os foliões agradecem a cordialidade da casa, e seguem para a próxima parada.
Exemplos de Cantiga de Chegada
1. Na chegada dos três reis, ai ai
Na sua bela morada, ai ai
De longe nós avistamos ai ai
Uma luz abençoada ai ai
Recebeu nossa bandeira ai ai
os reis santos abençoados ai ai
2. Jesus cristo nosso rei
ele é filho de maria
numa manjedoura fria
ele ali nos aqueceu
pela luz da estrela guia
os três reis do oriente
para visitar jesus menino
puseram-se a caminhar
no presépio onde ele está
incenso, ouro e mirra
levaram pra ofertá
Os ternos de foliões
Os ternos são compostos geralmente de sete cantores, além dos dois palhaços, porta bandeira, e músicos instrumentais (violeiros), sendo divididos desta maneira:
Primeira voz: é o embaixador, capitão, mestre ou puxador. É o elemento principal da Companhia, o puxador de versos e cantoria, geralmente representa o Folião mais respeitado e “sabido” de todo o grupo. Precisa ser repentista, catequista e trovador.
Segunda voz: Faz dueto com a primeira voz, ajudando a responder. É a dupla da frente.
Terceria voz: É o caceteiro. Uma voz forte que dita o padrão, fazendo a função da coluna vertebral da cantoria.
Quarta voz: Tala. Um tom acima do caceteiro.
Quinta voz: Contra Tala.
Sexta voz: Tipe.
Sétima voz: Requinta. É a voz mais aguda, a última.
Referências:
ANDRADE, M. DE - Danças Dramáticas do Brasil. São Paulo: Martins Fonte Editora, 1959
CASCUDO, L. C. - Literatura Oral no Brasil. São Paulo: Global, 2006
CARNEIRO, E. - Dinâmica do Folclora. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965
JAHN, L.P. A Literatura Oral E Tradicional Luso Brasileira: As Cantigas E Performances Dos Ternos De Reis Herdadas Dos Açores E Praticadas Em Florianópolis, Santa Catarina: UFRS - 2015
Ribeiro, P. M. (2019). Ascendeu a Estrela Dalva num facho de branca luz: Os sistemas de cantoria da Folia de Reis dos Prudêncio de Cajuru-SP. Revista Música, 19(1), 10-40.
(*) Guilherme Trucco é escritor paratiano, sua obra é inteiramente dedicada a explorar a cultura popular da brasilidade, e seus desdobramentos profundos, através de uma literatura ficcional voltada para o Realismo de Encantaria, uma mistura à brasileira de realismo mágico, realismo animista e o surrealismo. É autor dos livros de ficção: Saída Bangu, Vocês vão ter que me engolir, e Nó na Garganta, além de ser colunista no portal Ludopédio.
Seu Blog: https://www.guilhermetrucco.com e seu Instagram: @gui_trucco
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