O Conceito
Os opositores do bom humor
Abrão Slavutzky *
O bom humor é uma pequena ilha num mar de problemas. Talvez seja a ilha do tesouro, onde a riqueza é a espirituosidade, que vive a graça apesar das desgraças. Entretanto, o humor, mesmo sendo um dom precioso, não soluciona os conflitos psíquicos, muito menos influencia na violência ou injustiças sociais.
Mas ele é crítico (eu diria uma válvula de escape e segurança), um oxigênio da alma, pois alivia a força dos percalços. Logo, não é por acaso que, lentamente, cresce o interesse no humor, despertando a atenção dos profissionais da saúde. Também aumentaram nos últimos anos as publicações sobre as várias facetas do humor na História, Antropologia, Psicologia, Psicanálise, entre outros. Agora, não se pode ser otimista com o futuro do humor, pois seus opositores são poderosos e estão em todas as partes, em especial em nós mesmos. São adversários ocultos que dramatizam, se queixam, sofrem, com ou sem motivos, e com pouca capacidade para tolerar as frustrações inevitáveis da existência.
O contrário do humor é a mortificação. Estar mortificado é se sentir prostrado, abatido, mas também se manifesta de forma agressiva num estado de angústia, desconfiança, insatisfação consigo mesmo e com a vida. A mortificação pode ser difusa, aguda, silenciosa, mas sempre imbuída de alguma paixão de convencer ou vencer, ou de se defender. Na paixão falta distância do objeto de intenso desejo, seja ele qual for. Todo apaixonado vê na sua eleição uma escolha perfeita, não pode brincar com suas falhas e muito menos com a razão de seu intenso amor. Viver uma paixão é indispensável para aprender o que é o amor, entretanto ela tende a excluir o humor, que é rebelde às verdades indiscutíveis.
O humor vê tudo à distância (eu diria também com outra perspectiva), vê à si e aos demais de forma graciosa, na verdade se afasta não só para enxergar o todo, mas para estar livre (eu diria ser livre). Quem sofre muito, vive dependente de suas queixas e dores, é um dependente do seu passado que o aplasta. Sua vantagem é ser um dependente amparado, seu terror é o desamparo, logo não pode ser livre, só e amparado em suas próprias pernas. E se sabe que há dependências de toda ordem: as adições a drogas, comida, jogos de azar, instituições e religiões. As mortificações, que são geradas pelo desamparo, por angústias, certezas persecutórias, ressentimentos, expressam uma das faces destrutivas da pulsão de morte. A mortificação está enraizada no gozo masoquista, este estado primário do ser humano, que integra os opositores do humor.
Alguns dos opositores do humor são: queixa, paranoia, arrogância, depressão e crueldade. Não nesta ordem de importância, pois o primeiro poderia ser a angústia, o segundo talvez a arrogância, mas é mais adequado começar com a queixa. Até mesmo para ela não se queixar de ter sido preterida, pois a queixa se imagina certa, e está sempre a reclamar atenção. Esclareço, desde logo, que não se trata de qualquer queixa, uma queixinha qualquer. As queixas comuns, por exemplo, de quando chove, faz frio ou muito calor, como se o tempo estivesse sempre errado. Aqui o importante é a queixa sistemática, uma doença crônica, a queixite, uma queixa inflamada, resistente aos melhores anti-inflamatórios.
A Queixite
Quem vive se queixando de tudo põe boa parte da libido, a energia sexual, em desejar que os demais, e a própria vida, se sintam em dívida consigo. O queixoso contumaz asfixia boa parte de seu sentido do humor e de quem está à sua volta. Haja paciência com os grandes queixosos, pois são chorosos, chatos, uma chatice aliviada pelo que conseguem fazer de bom para suas vítimas. O escritor Jorge Luis Borges, quando perguntado sobre sua dor por ser cego, disse que não se queixava dela. E acrescentou: “É triste se queixar”. Os queixosos são vorazes, sempre estão a exigir mais de tudo e todos, seus desejos são sempre insatisfeitos. O queixoso escuta essa frase, gosta, mas segue se queixando, pois não acredita que a frase tem a ver com ele. E aqui cabe a pergunta de por que afinal todos se queixam? J. B. Pontalis respondeu assim a essa questão: “Quem se queixa de sentir-se decepcionado, em realidade se sente traído. E a primeira traição é a da mãe, que dirigia seu olhar a outra parte”. No fundo, os queixosos seguem sendo crianças insaciáveis, logo, o mundo está sempre malfeito. Quem vive se queixando está desencantado, pois imagina ter conhecido o encantamento quando foi embalado pelo canto do mundo. Tendo perdido esse passado imaginário, agora chora pela perda.
Um exemplo mundialmente conhecido, é o de uma verdadeira doutora em queixas, mais conhecida por idische mome, a famosa mãe judia. Agora me dou conta por que comecei a estudar os adversários do humor com a queixa. Primeiro vem a mãe, tudo começa nela, e fico contente que seja assim (a minha ficaria feliz). Toda mãe é um pouco ou muito idische mome, ou uma mamma italiana, que sofre e se queixa, e desde este lugar é poderosa. Mãe judia é engraçada nas piadas, que seus filhos criaram e divulgam como saborosa vingança. O engraçado é que este tipo de mãe não se importa com isso, pois para ela o importante é sempre estar na primeira página dos noticiários familiares. Ela é espaçosa pela sua forma infantil de ser, pede muita atenção e amor, como sua família está cansada de saber.
Duas histórias sobre a idishe mome. A primeira é muito conhecida, e diz respeito sobre uma longa conversa de três mães judias sobre seus filhos. A primeira, a mais exibida, começou logo dizendo que recebia seu filho para almoçar todas as semanas e que ele trazia os presentes mais caros só para ela. A segunda disse que isso não era nada, pois ela recebia flores todos os dias, até nos feriados, do seu filho e da sua filha, além, é claro, dos telefonemas e presentes. Finalmente, a terceira, a mais silenciosa, com segurança afirmou: "Tudo muito bem, felicito a todas, como amiga de vocês me sinto orgulhosa de como educaram bem seus filhos. Entretanto, me desculpem, mas eu sou uma mãe mais feliz que vocês, não me levem a mal. Meu filho vai todos os dias, cinco vezes por semana, ao “psicanalista” só para falar de mim!"
Já a segunda história é pouco conhecida, mas é a que mais gosto. Uma mãe judia morre, porque as mães judias também morrem. Muita tristeza dos familiares e amigos, afinal, ela era uma supermãe que ocupava o lugar central da família. Passados dez meses vem o dia da descoberta de matzeiva – descoberta do túmulo – em que há rezas e se retira o pano preto que cobre a matzeiva. Havia nos familiares uma curiosidade quanto ao que estava escrito, pois por recomendação da falecida ninguém podia saber. Para isso ela havia entregue um envelope ao filho mais velho, para entregar fechado a quem fôsse fazer seu túmulo, com os dizeres que deveriam constar na pedra. Desejo de morto tem que ser respeitado. O rabino, seguindo o ritual, chama o filho para retirar o pano, e todos então podem ler, finalmente, as últimas palavras da mãe: “Agradeço a todos os familiares queridos que tanto amei e me amaram. Entretanto, eu bem que avisei que estava me sentindo mal”. Esta história expressa o quanto a mãe judia e as mães em geral – com o devido respeito – sabem como se maneja a culpa, para assim manter o poder sobre os demais. Até morta ela seguia se queixando de o quanto suas reclamações foram desprezadas. A queixa das mães expressa a dificuldade de se adaptar ao crescimento dos filhos, à passagem do tempo. Na verdade, as queixas podem ser vistas como choros de quem foi injustiçado.
Os filhos da idishe mome contam as histórias, e assim brincam com suas exigentes mães, ganhando prazer com as piadas. O humor, em poucas palavras, é isso: ele transforma uma seriedade tensa em um brinquedo infantil com o qual é possível se divertir (eu diria se descontrair e contestar com leveza e diplomacia. O bom humor pode ser uma crítica social de valor e peso construtivo). Viver bem humorado é difícil, pois sempre ocorrem surpresas, como uma doença, uma perda, uma dor, um fracasso. E, frente à ferida narcisista, irrompe a queixa contra o outro, contra si ou contra o destino. Não por acaso o escritor Isaac Babel escreveu: “Motivos para queixas qualquer idiota tem, difícil é levantar o véu da existência com alegria”.
(As frases entre parêntesis, em itálico, são comentários da Conceição Trucom. Não resisto, porque sou mulher, mãe e pitaqueira de carteirinha, hehe!)
* Abrão Slavutzky acabou de escrever este livro sobre o humor, o bom humor, seus opositores, humor infantil, humor no Holocausto e... ainda em processo editorial para publicação em 2013. Mas, nos enviou para degustação e deleite da Turma Doce Limão.
Que honra: ele é psicanalista e médico psiquiatra com formação em Buenos Aires. Graduou-se em medicina em 1971, na Fundação Católica de Medicina do Rio Grande do Sul. Desde 2001, é colaborador do jornal Zero Hora e de diversas revistas. Entre outros, é autor de Quem pensas tu que eu sou? (São Leopoldo: Unisinos, 2009) e Psicanálise e cultura (Rio de Janeiro: Vozes, 1983). Alguns dos livros que organizou são O Dever da Memória - O Levante do Gueto de Varsóvia (Porto Alegre: AGE, 2003) e A paixão de ser – depoimentos e ensaios sobre a identidade judaica (Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1998).
Reprodução permitida desde que mantida a integridade das informações, citada a autoria e a fonte www.docelimao.com.br
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