Estresse coloca crianças em perigo

Estresse coloca crianças em perigo

Adenilde Bringel entrevista a psicóloga Lúcia Novaes *

A criança que passa por um processo de estresse está sofrendo, mas não tem referências, nem sabe verbalizar o que está sentindo. 

Reação do organismo com componentes físicos e psíquicos, o estresse pode ser desencadeado por inúmeros fatores, como medo, perda, irritação, excitação e, ganha contornos preocupantes quan­do o organismo é perturbado por longos períodos ou de maneira aguda. Cada vez mais relacionado a doenças como hipertensão, asma, colite, infarto e enfermidades autoimunes, o estresse atin­ge milhões de pessoas em todo o mundo, inclusive as crianças. Para evitar que a infância e a adolescência sejam prejudicadas, a psicóloga Lúcia Novaes, orienta pediatras, pais e professores a ficarem atentos aos sintomas para ajudar as crian­ças a lidar com os estressores modernos, que são muitos.

O que pode desencadear o estresse em uma criança?

As causas são bem variadas. Depen­dendo do contexto de vida, a criança pode ter estressores que serão específicos, mas também existem alguns que têm sido estudados e já percebidos como estressores comuns, por exemplo, hos­pitalizações, acidentes, doenças, nasci­mento de irmãos... Claro que isso será grave à medida que os pais não souberem administrar, uma vez que não é sempre que a criança tem um irmão e vai se estressar. Outros estressores comuns são mudança de casa e de escola e até a troca de empregada ou de babá, mas, de novo, tudo depende da estrutura familiar e das próprias vulnerabilidades da criança. Outro fator que estressa muito é morte na família, de um dos pais especial­mente. Além disso, um forte estressor é quando os pais privilegiam um dos irmãos em relação ao outro.

Excesso de atividades também provo­ca estresse nas crianças?

Sem dúvida. Temos visto muitos pais sobrecarregando as crianças com muitas atividades, que às vezes a própria criança pede, mas os pais têm de entender qual é o limite do seu filho. A criança vai fazer balé, piano, informática, inglês, espanhol, francês... e fica sobrecarrega­da como se fosse um miniexecutivo. Se a criança tem excesso de atividades (pior se relacionadas a aprender coisas), não está tendo tempo suficiente para o lazer, não está podendo brincar e uma atividade que ajuda a controlar o estresse é exatamente a brincadeira, o lazer.

Quais brincadeiras podem ajudar?

O ideal é que a criança participe de atividades físicas que não sejam muito competitivas porque, se ela já está estressa­da, a competição pode estimular mais ainda o estresse. A criança pode partici­par de brincadeiras que estimulem o ca­minhar, o andar e atividades que en­volvam socialização ao ar livre. Brinca­deiras que estimulem a criatividade e a concentração também são importantes, como quebra-cabeça e jogos de montar.

Então, o esporte competitivo é ruim?

Acho que um pouco de competitividade é bom, porque o mundo está mui­to competitivo e temos de preparar as crianças para o mundo. A questão é a forma como a criança participa e encara essa competição. Um estudo com joga­dores de futebol juvenil indicou agentes estressores na atividade e isso é preocupante. O que vemos é uma pressão exces­siva sobre algumas crianças e adoles­centes que já estão sendo tratados como profissionais, e esses excessos é que são o problema. Tudo na dose certa pode ser bom e participar de futebol, vôlei, basquete é maravilhoso para a criança, porque desenvolve o espírito de equipe, propicia colocar para fora toda aquela energia típica da idade e a própria ener­gia que ela acumulou com os estressores do dia a dia. O problema é quando a criança está sendo levada a conside­rar aquilo como uma questão de vida ou morte. E, para ajudar a controlar is­so, os pais são fundamentais, porque o comportamento deles em um jogo, por exemplo, pode fazer a diferença entre es­timular e estressar o seu filho.

Pais e professores muito exigentes tam­bém podem ser fatores estressores?

Sem dúvida, porque o estresse aca­ba contagiando o ambiente. Os pais es­tressados tendem a se comportar de ma­neira irritadiça, impaciente, e isso aca­ba estressando a criança. O mesmo ocor­re com os professores. Se os professores estão estressados acabam tendo compor­tamentos que vão fazer com que aquele ambiente se torne um ambiente estressa­do, e as crianças também podem ficar estressadas. Na verdade, tanto pais como professores podem ser exigentes como uma característica de personalidade, mesmo sem estar estressados. No entan­to, sendo exigente em um nível além da condição daquela criança, isso será, sem dúvida, um agente estressor. Impor­tante lembrar que cada criança reage de acordo com sua personalidade. Muitas vezes, os pais são exigentes e um filho não se estressa enquanto o outro se estressa demais, porque cada um vai ter o seu ritmo, o seu potencial. Os pais, geral­mente, educam da mesma forma ou ten­tam fazer da mesma forma com todos os filhos. No entanto, uma ou outra criança pode não conseguir atender a esse ritmo, o que gera queda de autoestima, a criança se sente rejeitada, diminuída, e isso tudo pode ir gerando um estresse que os pais não percebem, porque acham que estão fazendo o melhor.

Como o estresse costuma se manifes­tar na criança?

O estresse é um processo de adaptação do organismo, que vai tentando se ade­quar às mudanças, aos estímulos, aos desafios, e ocorre igualmente em crian­ças e adultos. Este processo, inicialmente saudável, pode ser tomar crônico e ser prejudicial. Os sintomas vão variando ao longo desse processo. No início são taquicardias, mãos suadas, hiperatividade, dores de barriga transitórias. No estado crônico, começa a haver um comprome­timento maior e os sintomas vão apare­cendo tanto no físico quanto no emocional e psico­lógico. Entre os sintomas mais comuns estão a dificuldade de con­centração, a agressividade e o apareci­mento de tiques nervosos, como roer unha, por exemplo. Às vezes, surgem tiques na expressão facial, como o piscar de olhos excessivamente. A criança pode ter depressão, chorar em demasia, fazer birra. Além disso, pode se tornar desobedien­te, rebelde. Portanto, é interessante que os pais estejam atentos para perceber se há alguma mudança de comportamento nos fi­lhos, para que possam ajudá-los. A apa­tia é outro sintoma típico de estresse, quando a criança fica desinteressada pelas coisas que gostava de fazer.

Quais são os sintomas físicos mais frequentes do estresse na infância?

Além das dores de barriga e de cabeça, os pacientes costumam reclamar de dores nas pernas e braços, porque há uma ten­são muscular, e podem surgir asma e alergias. Isso ocorre porque o estresse de­sencadeia uma excessiva produção de harmônios que vai afetando o sistema imunológico e, com isso, a criança fica mais suscetível a infecções e a contrair doenças contagiosas, se tiver contato com vírus e bactérias. Também é comum sur­girem problemas dermatológicos, como a psoríase, e enurese noturna em crian­ças que já não urinavam mais na cama.

O bullying também é um agente estres­sor importante...

Sem dúvida. A criança que sofre bullying se sente injustiçada, desmo­ralizada e, muitas vezes, os pais não sabem o que acontece na escola. Por isso, se perceberem alguma mudança nos filhos devem, primeiro, conversar e tentar fazer com que a criança conte o que está havendo. Se o filho não conse­guir se expressar, os pais devem ir ao colégio para verificar se há algum pro­blema para que possam tomar alguma atitude.

Se o estresse não for tratado adequa­damente pode causar prejuízos sérios?

Com certeza, porque vai havendo uma ampliação dessas consequências. Uma criança com esses sintomas terá dificuldades sociais, de se relacionar na escola e de aprendizagem, porque não consegue se concentrar. Além do mal-estar físico, a criança pode ficar deprimida, ansiosa, e vai ter dificuldade na vida em todas as áreas de forma geral. O pior é que, às vezes, o problema não é percebido facil­mente, porque o estresse na criança ain­da é pouco conhecido. Mas, se o proble­ma não for reconhecido logo, os prejuí­zos podem ser muito sérios.

Como os pais podem reconhecer um processo de estresse?

Minha orientação é que os pais este­jam sempre atentos para observar mu­danças no comportamento dos filhos. Se a criança está se queixando de deter­minados sintomas deve ser levada ao pe­diatra para que o problema possa ser investigado. O básico para os pais pode­rem ajudar é conhecer o que é estresse. Se não conhecem e não sabem tudo que o estresse pode ocasionar, fica difícil real­mente identificar.

Os pediatras estão preparados para identificar o estresse?

Esperamos que sim, que eles conheçam o problema para que possam alertar os pais e orientar para que façam algumas mudanças naquele contex­to e ajudem a criança a sair daquela si­tuação. Porque a criança que passa por um processo de estresse está sofrendo e não sabe dizer bem o que está acontecendo. Tive contato com pediatras que realmente têm esse conhecimento, estão atentos a isso. Mas, na verdade, não são todos, talvez nem seja a maioria. É preciso divulgar mais este tema para que os profissionais fi­quem atentos, porque geralmente eles es­tão muito ligados na questão física, pro­curam uma causa mais objetiva para algumas manifestações de doença e es­quecem de associar com algo que possa ser mais emocional, alguma coisa que vai além do corpo.

Além de fatores ambientais, existem outras fontes de estresse?

As fontes internas são importantís­simas. Por exemplo, a timidez e a difi­culdade de se relacionar funcionam como fontes internas de estresse. E, muitas crian­ças têm essa característica e podem so­frer estresse em função disso. Outros fa­tores importantes são o medo de fracas­sar, a insegurança, o medo de punição, inclusive da punição divina. Existem pesquisas que indicam que o medo de Deus pode prejudicar as crianças. Isso geralmente ocorre quando os pais edu­cam amedrontando. Como não conse­guem controlar o filho, acabam dizen­do 'Deus castiga, seja bonzinho, senão você será castigado'. Essas frases po­dem até ter algum efeito positivo imedia­to, mas algumas crianças desenvolvem um medo muito grande, porque são ameaçadas frente a algo que não estão vendo, que não sabem o que é. Outras vezes, a criança tem tendência a inter­pretações muito catastróficas dos even­tos e sempre acha que vai acontecer uma coisa ruim. Essas crianças têm medo que os pais morram, sofrem da ansiedade de separação, e isso também pode gerar estresse. Essas questões internas são fun­damentais e não se pode colocar a res­ponsabilidade só no ambiente. Há crian­ças que já nasceram com predisposições e outras que foram desenvolvendo por causa do contexto com a educação.

Pais superproibidores também acabam prejudicando os filhos?

Sim. Uma coisa importante que tem sido estudada é que a proteção excessiva, que tem como objetivo não deixar a criança sofrer, atrapalha o aprender a lidar com o estresse. A criança precisa ter alguns estressores, precisa ouvir um não de vez em quando, passar por algu­mas situações não tão fáceis de resolver, claro, sem exageros ou desnecessidades. Quan­do a criança está recebendo responsabi­lidade demais, por exemplo, vai ter um estressor muito potente que está acima das possibilidades dela, e isso não seria um estresse considerado bom. Estresse bom para a criança é ouvir um não, é um brinquedo que não pode ter, alguma coisa que não pode fazer, não pode ob­ter, até por dificuldades familiares mes­mo, porque isso fortalece. A criança pre­cisa aprender a lidar com a frustação e com o estresse. Adultos que não sabem lidar com o estresse, muitos vezes, fo­ram crianças que não tiveram contato suficiente com situações de estresse, que os pais protegeram demais. Agora, aque­les que tiveram estressores demais tam­bém vão ter dificuldade lá na frente.

A permissividade também atrapalha?

A permissividade é prejudicial de to­das as formas. Se uma criança é criada sem limites não aprende a lidar com o mundo real, porque vai ter sempre proteção e em casa pode tudo. Acontece que fora de casa não pode tudo! Esses pais estão preparando essa criança para so­frer. E essas crianças, com toda certeza, vão ter problemas no futuro, porque não têm limites. Elas podem se estressar por pequenas coisas, porque não desenvolve­ram essa resistência até para pequenos estressores, e isso vai ser um problema. Fora que esse jovem vai querer coisas que o mundo não vai permitir e isso tam­bém vai gerar um grande estresse que poderá, em casos extremos, levar à de­pressão, ao suicídio e uso de drogas.

A violência entre crianças e jovens tam­bém está relacionada ao estresse?

Violência, raiva e agressividade po­dem ser sintomas de estresse, mas nem sempre é assim. Às vezes, o indivíduo já tem essa característica em sua personali­dade. Mas o estresse pode, sim, trazer irri­tabilidade, agressividade, mau humor, e a pessoa acaba sendo meio raivosa e agressiva. E pode ser violenta também.

O estresse agudo é mais prejudicial para a criança ou o adolescente?

Pergunta difícil porque cada um está em um momento da vida. Aparentemen­te, o sofrimento é maior para a criança estressada que é muito mal compreendi­da e, muitas vezes, não vê legitimado aquele sofrimento. Porisso, acaba sendo tratada de forma pejorativa e costuma ser criticada. No momento de formação isso é muito importante, porque a auto-estima está se desenvolvendo, a auto imagem se formando. E uma criança estres­sada e mal compreendida pode ter pro­blemas de aprendizagem, desenvolver uma imagem de que não é capaz, e isso é seríssimo. Já a adolescência é uma fase de tantas mudanças e com tantos estres­sores... É preciso ajudar os adolescentes a criar estratégias para lidar com o estresse, porque é uma idade muito deci­siva para o futuro. Se isso não for feito, ele pode ter depressão e escolher usar dro­gas, fumar, beber ou manter um comportamento de risco como estratégia de con­trole do estresse, com grandes prejuízos.

Que doenças físicas podem ser desen­cadeadas pelo estresse?

A hipertensão é uma das doenças provocadas pelo estresse crônico, porque quando um indivíduo se estressa a pressão normalmente sobe. Se a pessoa está vivendo regularmente situações de estresse vai tendo elevações muito fre­quentes e isso pode desencadear a hiper­tensão, especialmente se houver predis­posição genética. Além disso, acredita-se que problemas como gastrite e úlcera também possam estar relacio­nados ao estresse crônico. Claro que exis­tem outros fatores que desencadeiam es­sas e outras doenças e temos de falar sobre isso com muito cuidado. Mas estu­dos já comprovam que o estresse leva a alterações fisiológicas que podem alte­rar o funcionamento do organismo.

Há exagero no diagnóstico do estresse?

Vulgarizaram muito o termo. Com isso, muitos acham que estresse não é nada. Mas, o estresse pode ter uma im­portante influência em muitas doenças, tanto físicas quanto emocionais, como fator que facilitou o enfraquecimento do organismo, física e psicologicamente.

O estresse é mesmo o mal do século?

O estresse vai ser um problema quan­do atingir fases avançados. Na primei­ra fase, do alerta, o estresse é bom, por­que nos ajuda a produzir, a agir e a re­solver problemas. Quando vai passan­do para as outras fases vai trazendo um desgaste do organismo. Estamos viven­do em um mundo de muitos estressores e temos de aprender rapidamente a li­dar com isso, porque vai ser uma seleção natural: vai sobreviver quem conse­guir desenvolver estratégias adequadas de lidar com os estressores atuais. E te­mos de ensinar as crianças desde cedo a aprender a lidar com os estressores mo­dernos, porque são muitos.

Fonte: Revista Super Saudável 52 (out-dez 2011)

Leia também: Brincadeiras e Cura e Brincar é bom demais e muito saudável

Lúcia Novaes é psicóloga e professora adjunta do Instituto de Psico­logia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Presi­dente da Associação Brasileira de Estresse.

Reprodução permitida desde que mantida a integridade das informações, citada a autoria e a fonte.


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