As festas profano-religiosas. EP01: A CONGADA

Guilherme Trucco *

As festas religiosas reafirmam a identidade e os laços de um povo, ao mesmo tempo que de forma artística garantem a passagem de suas tradições e sistema de crenças, uma prática de diversão que dialoga com o sagrado. 

Festas religiosas são organizadas como forma de reciprocidade, de retribuição ou agradecimento por uma graça alcançada, e que necessita ser retribuída. Trata-se do sentimento da felicidade gerada pela graça recebida, atrelado ao agradecimento e devoção ao sobrenatural que o reconhece e se vê reconhecido. Brincadeira e obrigação se misturam em um estado emocional que agrada ao mesmo tempo aos deuses e à si mesmo através de bailados e cantados, tanto dramatizados/cênicos, quanto ritualísticos, que conectam a um só tempo corpo e espírito.

O canto e a oralidade, dentro das festas populares, oferece então um ponto crucial: ele diferencia a festa popular, do espetáculo capitalista, da forma como foi teorizada por Guy Debord em Sociedade do Espetáculo. O que diferencia uma festa popular cultural popular de um espetáculo é justamente a separação entre ator e espectador. Em uma festa popular, todos são atores, todos participam do acontecimento, que se dá na rua de forma livre e gratuita, todos fazem parte de uma mesma cultura e tradição, logo, todos conhecem seus cantos e significados. Em um espetáculo, existe a figura do expectador, que não participa ativamente como ator da festa, e apenas assiste (invariavelmente mediante ingresso de capital), criando um distanciamento entre as instâncias. 

                A cantoria oral tem, portanto, papel fundamental na apropriação popular cultural de suas manifestações. 

“A oposição e a complementariedade que existem entre brincadeira e obrigação, entre sagrado e profano, constituem uma das formas pela qual analisamos a identidade que as festas religiosas populares ajudam a construir.” Sérgio Ferreti 

A CONGADA               

A Congada, assim como o maracatu, surge da encenação dramática de coroação dos Reis do Congo. Entretanto, ao passo que no Pernambuco há uma mescla entre o Candomblé (de origem iorubá), e a dramatização da coroação, quando se trata da congada, de origem do estado de Minas Gerais, já está mais calcada na cultura do povo banto, que é originário da região de Angola e Congo. Dessa forma, a dramatização da coroação possui traços um pouco mais preservados da história dos reis e rainhas bantos, notadamente a Rainha Ginga (em quimbundo Nzinga Mbande ou Nzinga Mbandi) talvez a mais importante líder de resistência africana, rainha do reino de Matamba, região de Angola, frente ao colonialismo português. Travou grandes batalhas, além de costurar tratados de aliança e de paz. 

Entretanto, se por um lado em Minas Gerais a cultura banto teve seus traços mais preservados na Congada, por outro a presença da mineração do ouro trouxe forte presença do controle da corte portuguesa, o que acabou influenciando em maior mistura (forçada pela força da lei) dos aspectos católicos, tornando a presença de São Benedito, e de Nossa Senhora do Rosário -dois santos protetores dos negros e escravos-, mais evidente na Congada, tanto na dramatização do cortejo quanto nas cantigas. 

O processo todo tem início com o que se chama de “campanha” - em meados de setembro - nas casas dos festeiros, com a preparação das bandeiras e indumentárias. Entretanto, a Congada geralmente acontece entre os meses de Outubro e Novembro, quando ocorrem as comemorações de São Benedito, e de Nossa Senhora do Rosário. Iniciando invariavelmente em um sábado, com a busca das bandeiras na casa dos festeiros e devotos durante o dia. À noite, ocorre o levantamento do mastro e das bandeiras, geralmente feito apenas pelos “Ternos Moçambique”, ocasião em que são acendidas velas, e não raro é servido algum tipo de beberagem.

O levantamento do mastro tem simbolismo importante, sendo associado ao tronco onde São Benedito era castigado, ou ainda, pode ser considerado como o mastro central da choça: moradia dos escravos da mineração.

 

No domingo acontece o restante do folguedo, começando pela manhã com todos os ternos visitando o mastro (a depender da cidade, pode ser rezada nesse momento a “missa conga”). Durante o dia os ternos visitam os festeiros que ajudaram na preparação da festa durante todo o período de campanha, e nesse momento já se dá um desfile dos ternos pelas ruas da cidade. Ao meio dia acontece a hora do almoço nos “quartéis” ou “reinos”, onde durante todo o dia ficaram as matriarcas designadas para a feitura do almoço, um processo muito importante, principalmente relacionado à São Benedito, santo venerado por muitos milagres relacionados a alimentação dos necessitados. Após o almoço, acontece a “busca do reinado no mato”. Durante o período imperial no Brasil, as coroações de Reis Pretos e Reis Congos já eram uma tradição, com certa permissão por parte da igreja (com a condição que fossem venerados também os santos católicos), entretanto, quando da presença imperial ou real nas cidades, os reis eram escondidos no meio do mato, e posteriormente eram resgatados (muitas vezes a cavalo, gerando o momento da Cavalhada), como refletem os versos abaixo.

 

Quando rei branco chegô

o Rei Congo é nosso Rei

o padrim mandô sumi

o Rei Congo é nosso Rei

nosso Rei nossa Rainha

outro rei queremos não

pra Rei branco nunca vê

outro rei queremos não

Após a busca dos reis no mato, eles são levados em procissão pela cidade até a igreja, no chamado “puxamento da coroa”, para que então, uma vez dentro da igreja, sejam coroados os reis e rainhas Congos. Ao final do dia, ocorre o descimento dos mastros e bandeiras. 

Como toda festa popular, cada cidade tem seus procedimentos e uma multiplicidade infinita de encenações e dramatizações distintas existe por todo o Brasil, entretanto, este seria o esquema mais geral. A presença de religiões de matriz africana também sucede em maior ou menor grau, a depender da cidade ou região, sendo notadamente a umbanda, como vertente maior das crenças originárias do povo banto, em Minas Gerais muito presente. 

É interessante notar a presença do “bastão” entre os Capitães dos ternos, algo que apresenta alguma semelhança com a lança do Caboclo de Lança no maracatu rural. O bastão da Congada é um portador de vibrações, serve como proteção, e deve ser rezado e benzido antes de sair para as ruas.

 

Assista ao vídeo Episódio 01 - CONGADA

Confira a Receita AQUI

DESFILE GERAL 

1. Oh meu sabiá oh meu sabiá

toda madrugada

eu sonho com você

se você duvida

eu vô sonhá pra você vê.

 

2. Tanta zimbuia

cum tanta zimbarua

sem me libertá

o que viemo fazê, meu zinfin?

Festejá Nossa Senhora

com prazer e alegria

Há! Há! Há! Há! Há! Ehhh!

Nas horas de Deus vamos conversar.

 

3. O preto quando fugia

Do sinhô virava nego

Capueira intão cumia

Fosse noite fosse dia.

 

4. Macu que Ambrósio chega

Pra robá moça bunita

Dona da fazenda deita

Vigiano sua fia.


5. Oi dá licença

Quero passá

Estou com fome

Quero jantá.

 

6. Lá na minha terra

Eu toco demanda

Na terra dos otros

Os otros é que manda.

 

7. Vim de Angola

Vô festejá

Lá no quartel

"golina" vô dá.

 

8. Padre novato

Festa enterrô

Num quis mais benzê

Mastro abandonô ai, ai.

 

9. Vida de congadeiro

Congadeiro nasceu livre

Lutô contra escravidão

Mas a vida é muito triste

Negro virou solidão.

 

10. Pulhá de sinhô

Eu não sô negrero

cria de ninguém eu sô

congadero não sô nênen.

 

Num sô pediguero

neguim de sinhô

sô moçambiquero de muito valô.

 

11. Êta coisa tão bonita

êta coisa tão bonita

esse tronco que dá vida

esse tronco que dá vida

fé prá nós continuá

fé prá nós continuá.

 

12. Só dispois que o congo passá

chuva vai chovê

terra vai moiá

oi lê lê lê

oi lá lá lá.

 

13. Ehhhhhhhhhhhh

essa gunga vem de longe

vem lá do meu ancestral

essa gunga é muito antiga

ela vence todo mal, ai, ai, ai.

 

14. Eu vou eu vou

dançá dançá eu vou

vou tocá meu reco reco

vou bater o meu tambor. 

Eu vou eu vou

fugir eu vou eu vou

vou chamar Zâmbi de novo

vou fugir do meu sinhô.
 

LEVANTAMENTO DO MASTRO e BANDEIRAS

1. Quando chego ao pé de engoma

Primeiro eu peço licença

Companheiros de palma nós vamos brincar

A Senhora do Rosário mandou me chama

Licença Senhor Rei, licença Senhora Rainha

licença capitão, licença os tamborzeiros, licença ao povo todo

Chorou, chorou, chorou, êêê.
 

2. A bandeira vai pro céu

Com prazer e alegria

A bandeira vai pro céu

No Santo Rosário de Maria.

 

3. Padre novato

Festa enterrô

Num quis mais benzê

Mastro abandonô ai, ai.

 

4. Nesse palácio tem coroa,

nesse palácio tem bandeira,

Nesse palácio tem amor.

A Senhora do Rosário,

Ela é nossa padroeira.

 

CANTORIA DE CHEGADA: ao chegar na casa de um festeiro

Oi dá licença

Prá gente chegá

Viemo de longe

Prá te visitá

Oi lêlêlê oi lálálá.

 

CANTORIA DE PARTIDA

Oi que é hora

Nóis vamo imbora

Vamo com Deus

E Nossa Senhora.

 

CORTEJO E PROCISSÃO 

Cantoria de Louvação a Nossa Senhora e São Benedito

1. Virge Maria lá in vém iáiá

Com seu manto explendô iáiá

Tá sorrindo de alegria iáiá

Tá sorrindo de alegria iáiá.

 

2. Quando vi minha mãezinha iáiá

Lá no mei da mata virge iaiá

Tava cheim de anjim iáiá

Cheim de anjim do céu iaiá.

 

3. Sol tá lá no mei do céu iáiá

Já de quase mei do dia iáiá

Onde tá sinhá rainha iáiá

Onde tá sinhá rainha iáiá.

 

4. Essa santa é muito antiga

Essa santa é muita antiga

Do tempo da escravidão

Do tempo da escravidão.

 

5. Lá na mata ela surgiu

Lá na mata ela surgiu

Foi o Congo que achou

Foi o Congo que achou.

 

6. Vamos louvar nossa mãe querida

A Senhora do Rosário e

a Senhora Aparecida.

 

7. Que Santa é essa Que vem no andor?

Senhora do Rosário Mãe do Criador.

 

8. Lá vem Nossa Senhora

Com sua fita voando

Quem tiver a fé com ela

Vem atrás acompanhando.

 

9. São Benedito

Já foi cozinheiro

Fez moçambique

Pro moçambiqueiro.

 

10. Meu São Benedito

Chegô no quartel

Fez tanta comida

Que encheu o céu.

 

11. São Benedito

Tão preto que só

Deu a liberdade

Pro meu bisavô.

 

12. Meu São Benedito

Tem pena de mim

 Ajuda eu vivê

Lá no meu cantim.

 

13. Foi São Benedito

Que deu liberdade

Pra todo escravo

Na Igreja entrá.

 

14. Vim lá de longe

Deixa eu passá

Meu São Benedito

Vim adorá.

 

15. Na terra tigela

Patrão num incheu

Vei São Benedito

E a fome morreu.

 

BUSCA DO TRONO COROADO

Cachoeira desceu a serra

Foi pro mar, foi pro mar

São Benedito Vem me ajudar, me ajudar

A levar coroa de Nossa Senhora do Rosário.

 

CHEGADA DAS GUARDAS

“Oh! Licença. Oh! Licença.

Oh, licença venho pedir,

a Senhora do Rosário

foi quem me trouxe aqui!

 

SAUDAÇÃO ENTRE GUARDAS

Olha a bença olha bença

Senhor Rei, Senhora Rainha

Olha a bença.

 

COROAÇÃO REI E RAINHA 

Oh! Entregai senhor Rei

Oh! Entregai senhor Rei

Oh! Entregai vossa coroa

Oh! Entregai senhor rei

Oh! Entregai sá Rainha

Oh! Entregai sá Rainha

Oh! Entregai vossa coroa

Oh! Entregai sá Rainha

 

1. Ei, ei, meus irmãos

Que hora é tão boa

Vamo começá coroação 

Vamo começá coroação 

Licença eu pegá sagrada coroa.

2. Com a coroa nas mãos dirige-se ao novo Rei:

Ei, ei vamo festejá

Ei, ei vamo coroá

Ei, ei que grande emoção 

Ei, ei que grande emoção 

Ei, ei vamo coroá.

3. Em seguida, pede licença ao antigo Rei, para retirar o manto:

Ei, ei, tá de parabéns

Peço licença das minha mão

Retirá manto de nossa mãe

Retirá manto de nossa mãe

Peço licença a virge também

Ei, ei, ei, a virge também.

4. Segurando o manto azul, canta, mostrando-o aos devotos:

Ei, ei meus irmãos

Que grande alegria

Que grande alegria

Esse é o manto

Da virge Maria, ei, ei.

5. Finalizando, pede licença para colocar o manto de novo Rei:

Ei, ei, me dá licença

Ei, ei que vo colocá

Manto da virge vo colocá

Manto da virge vo colocá

Coroa no Rei vamo coroá

Pra terminá coroação, ei, ei. 

 

ZOMBARIA

A canoa afundô

lá no meio do má

porque marinheiro

num soube remar.

 

A galinha botô e chocô

e só num deu ovo

que o pinto criou.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Livros publicados: 

Luís Câmara Cascudo – Literatura Oral no Brasil

Mário de Andrade – Cantos de Feitiçaria no Brasil

Edison Carneiro – Folguedos Tradicionais

Luiz Antônio Simas, Luiz Rufino, Rafael Haddock-Lobo – Arruaças

Teses e Dissertações:

Jeremias Brasileiro – Congadas de Minas Gerais – Fundação Cultural Palmares

Cris Nery – Um olhar sobre o Congado de Minas Gerais – UFMG

(*) Guilherme Trucco é escritor paratiano, sua obra é inteiramente dedicada a explorar a cultura popular da brasilidade, e seus desdobramentos profundos, através de uma literatura ficcional voltada para o Realismo de Encantaria, uma mistura à brasileira de realismo mágico, realismo animista e o surrealismo. É autor dos livros de ficção: Saída Bangu, Vocês vão ter que me engolir, e Nó na Garganta, além de ser colunista no portal Ludopédio.
Seu Blog: https://www.guilhermetrucco.com e seu Instagram: @gui_trucco


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* Conceição Trucom
 (Instagram: @conceicaotrucom) é química, pesquisadora, palestrante e escritora sobre temas voltados para alimentação natural, bem-estar e qualidade de vida. Possui 10 livros publicados, entre eles O Poder de Cura do Limão (Editora Planeta), com meio milhão de cópias vendidas, Mente e Cérebro Poderosos (Pensamento-Cultrix) e Alimentação Desintoxicante (Editora Planeta).

Reprodução permitida desde que mantida a integridade das informações e citadas a autora e a fonte: www.docelimao.com.br

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